Não é de hoje que se sabe que saneamento básico precário é um ambiente propício para a propagação de doenças. Dados mais recentes apurados pelo Instituto Trata Brasil, organização que monitora os avanços do setor no país, apontam que 16% da população não contam com acesso à rede de água tratada, enquanto quase metade (47%) não tem seu esgoto coletado. Os problemas não param por aí: de todo o esgoto recolhido pelas concessionárias, apenas 46% são tratados antes de serem devolvido a corpos d´água.
A consequência de índices fracos como esses não poderia ser outra: anualmente, são registradas mais de 300 mil internações por doenças como hepatite A, cólera, diarreias e leptospirose (causada pelo contato com urina de ratos), todas relacionadas à falta de acesso à água tratada, coleta e tratamento de esgoto. O levantamento é do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgado em março de 2020.
A causa desse problema histórico, claro, é a falta de investimento. Nos últimos anos o Brasil investiu uma média de R$ 12 bilhões por ano em saneamento, segundo dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), aproximadamente metade do que deveria ser gasto para “universalizar” os serviços em todo o país, termo que significa que foram alcançados índices de 99% de acesso à água tratada e mais de 90% de coleta e tratamento de esgotos. Se seguirmos nesse patamar, segundo cálculo da CNI (Confederação Nacional da Indústria), levaríamos três décadas para alcançar o objetivo.
Esse cenário, porém, pode começar a mudar a partir de agora. Em julho de 2020 o presidente Jair Bolsonaro sancionou o novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14026/2020). A lei traz a promessa de universalização até 2033 e abre caminho para o acesso da iniciativa privada à prestação de serviços de saneamento nas cidades brasileiras. Até então, muitas utilizavam os chamados “contratos de programa”, que eram firmados com empresas estaduais de saneamento sem a necessidade de licitação. Agora, a concorrência é obrigatória. Outra importante mudança é em relação aos blocos de municípios. Cidades pequenas podem formar grupos para contratar os serviços de uma concessionária de forma coletiva.
Embora apontada por alguns como tendo sido criada para beneficiar os lucros da iniciativa privada, a lei é vista com bons olhos por especialistas em saneamento e foi festejada pelo governo: “Essa é uma conquista histórica que torna possível que todo brasileiro tenha acesso à água potável e ao esgoto tratado. A lei vai padronizar regras e dar segurança jurídica, algo que investidores do mundo todo aguardavam. Precisamos de investimentos em torno de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões em 10 anos e só chegaremos a esse montante se somarmos esforços públicos e privados”, disse o Ministro Paulo Guedes à época da sanção presidencial.
Para falar sobre o tema, a SpaceMoney entrevistou Gesner Oliveira, ex-presidente da Sabesp, uma das maiores empresas de saneamento no mundo. O economista acredita que o novo marco tem potencial para destravar investimentos, atrair capital estrangeiro e finalmente tirar o brasil do atraso histórico nos índices de saneamento, que ele considera “vergonhosos”.
Confira:
Em um artigo publicado na FGV, o senhor classifica como vexatório o atraso do Brasil no setor de saneamento. Hoje, o país sofre para alcançar universalização. Muito esgoto ainda é despejado in natura e a média das perdas de água chega perto dos 40% (16% não têm água tratada e 47% não têm acesso à rede de esgoto), segundo o Trata Brasil. O novo Marco regulatório do saneamento tem como objetivo colocar um ponto final nesse problema histórico nos próximos 13 anos. Na sua opinião, é possível chegar lá nesse prazo?
Sim, é possível. Essa meta foi estabelecida pelo Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico) e incorporada pelo novo marco. Para alcançar esses objetivos são necessários investimentos, bons projetos, regulação, gestão e planejamento. O novo marco legal tem como objetivo a universalização do saneamento básico no Brasil e, para que isso ocorra, é preciso dar um salto de investimento. A nova lei abre espaço para mais concorrência entre empresas, investimentos e estímulos para eficiência dos serviços, o que pode ser uma solução para municípios em situação fiscal delicada. A nova lei também atribui à ANA (Agência Nacional de Águas) a tarefa de padronizar as normas de referência para as concessionárias. Com normas e regulação mais padronizadas é possível ter mais segurança jurídica e mais eficiência.
Quais são as principais ameaças e obstáculos para que isso aconteça na velocidade desejada?
O principal obstáculo é a não implementação dos dispositivos do novo marco ou implementação parcial, o que pode incorrer em atrasos ou distorções. A padronização das normas feitas pela ANA (Agência Nacional de Águas) deve contribuir para melhorar o serviço. Hoje existem mais de 50 agências reguladoras com normas e procedimentos diferentes. Também há resistência política aos processos de concessão, o que pode dificultar as parcerias público-privadas.
Há algum projeto em andamento para padronização das normas feitas pela ANA com as outras agências ou um prazo para isso deve acontecer?
Sim, a ANA, em parceria com o Ministério da Economia, realizou algumas contratações através de licitações com o objetivo de fazer estudos para a criação de normas de referências.
O senhor acredita que a pandemia da Covid-19 e outras que poderão acontecer no futuro com maior frequência, como previsto por virologistas, têm relação direta com o déficit de saneamento básico? A sociedade, como um todo, está mais consciente da necessidade de universalização do saneamento básico?
Segundo relatório da Abcon, 34,7% dos municípios no Brasil registraram a ocorrência de epidemias ou endemias provocadas por falta de saneamento em 2017. A doença mais citada pelas prefeituras foi a dengue, 26% reportaram ocorrência de endemias ou epidemias de dengue. A Zika e a Chikungunya também são transmitidas pelo mosquito Aedes Aegypti, que se reproduz em água parada. Essas doenças estão diretamente relacionadas à falta de saneamento básico. O contexto de pandemia da Covid-19 e a necessidade de reforçar a prática de hábitos como lavar as mãos evidenciaram ainda mais a importância do saneamento. Em um país com mais de 35 milhões de habitantes sem acesso à água tratada, ter acesso ao saneamento é fundamental.
O que, de fato, já aconteceu como reflexo do novo marco regulatório? Ele já produziu algum efeito?
Ainda restam os vetos presidenciais que precisam ser analisados no Congresso [o presidente vetou mais de 20 dispositivos da lei, oito deles ainda em apreciação]. Além disso, os principais pontos do novo marco que já poderiam estar em vigor ainda estão sendo implementados, como a padronização das normas ou o fim dos contratos de programa.
Sempre se falou, no Brasil, que saneamento não dá voto e, por isso, não avança na velocidade necessária. O senhor enxerga, hoje, maior interesse político para ações nessa área?
O resultado satisfatório de concessões recentes de serviços de saneamento, como Cariaciaca (ES), Maceió (AL) e no Mato Grosso do Sul devem estimular a novas rodadas de concessões e mostra apetite do setor privado no segmento. A sociedade tomou consciência sobre a necessidade da universalização do saneamento básico e o poder público deve atender essa demanda crescente.
Nos últimos oito anos o Brasil investiu anualmente metade do que seria necessário para alcançar a universalização até 2033. Nos patamares de investimento atuais, segundo o cálculo do SNIS e do Plansab, só alcançaríamos a meta em 2052, 19 anos depois. Acredita que as novas regras que têm como objetivo atrair a iniciativa privada darão conta desse aporte que falta?
Sim, os últimos leilões de saneamento apontam para um grande interesse da iniciativa privada. Para consolidar esse interesse é preciso implementar as normas que dão segurança jurídica para as empresas privadas. O novo marco abre espaço para um salto dos investimentos privados e para a regionalização do serviço. A regionalização do serviço vai permitir que todos os municípios participem de leilões, ao mesmo tempo em que as concessionárias ganham escala na prestação de serviço.
O Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) afirma que o novo marco está longe de se preocupar com o saneamento no Brasil. Seus interesses seriam apenas atender grandes grupos privados de saneamento. As críticas se agravaram principalmente depois de o presidente assinar o Decreto 10.588, que impede que cidades em regiões metropolitanas se associem livremente. Segundo eles, essa é uma medida que visa apenas maior rentabilidade para as concessionárias. Como o senhor enxerga esse decreto? Ele traz algum malefício para o objetivo da universalização?
O decreto regulamenta alguns artigos da lei do novo marco, formaliza a assessoria técnica e financeira e indica as condições para o auxílio do governo federal. O novo marco atende a uma demanda da sociedade e tenta resolver os grandes problemas do saneamento no Brasil, com os vergonhosos índices de perdas e a falta de acesso à água tratada e esgoto que a atual legislação e estrutura dos serviços de saneamento ainda não resolveram. É preciso destacar que o novo marco contribui para a melhoria da eficiência dos serviços prestados e, se bem implementado, deve contribuir para atender aos interesses da população que carece de bons serviços.
A criação de blocos [regionais de concessão] possibilita um ganho de escala do serviço e um equilíbrio financeiro entre os municípios superavitários e deficitários. Os blocos regionais possibilitam que todos os municípios sejam atendidos. O decreto 10.588/20 regulamenta dispositivos para adesão, estruturação da prestação regionalizada, elaboração dos blocos regionais, modelagem dos serviços dos blocos e financiamento para os titulares. O decreto estabelece também requisitos de desempenho, eficiência, eficácia, observância das normas expedidas pela ANA para o apoio financeiro e técnico por parte do governo Federal.
Outro argumento da entidade, consequência desse, é que o novo marco legal acarretará em exclusão de pequenos municípios e zonas rurais, que trazem menos rentabilidade. No modelo atual existe o chamado subsídio cruzado, que não seria garantido com a abertura para empresas privadas. Como o senhor enxerga essa questão?
O novo marco não altera o mecanismo de subsídio cruzado. Também é preciso esclarecer que o novo marco estimula a concorrência, proibindo os contratos de programa e estabelecendo a prestação de serviços via concorrência. O importante é o desenho da licitação e as normas ditadas pela ANA, quem pode prever o subsídio cruzado, mesmo quando o serviço é prestado por empresa privada.
O objetivo dos blocos é que todos os municípios sejam atendidos sem deixar de fora pequenos municípios. Antes da aprovação do novo marco houve um grande debate sobre os pequenos municípios não terem acesso ao serviço de saneamento e esse debate criou mecanismos como a prestação de serviço regionalizados. O decreto 10.588/20 busca regulamentar o auxílio técnico e financeiro dos blocos regionais pelo Governo Federal.
O Instituto Transnacional da Holanda apurou que entre 2000 a 2019, 312 cidades em 36 países reestatizaram seus serviços de tratamento de água e esgoto, porque as empresas privadas aumentaram o valor das tarifas e entregaram um serviço de baixa qualidade, entre elas metrópoles como Paris, Berlim e Buenos Aires e La Paz. O Brasil, no entanto, vai na contramão, querendo atrair o setor privado. Aqui a história pode ser diferente?
É preciso examinar cada caso, em algumas cidades citadas. Em Paris, o contrato de concessão encerrou, os investimentos previstos foram realizados e os serviços voltaram à administração pública. Após a infraestrutura montada a principal bandeira foi a redução da tarifa o que gerou uma redução no investimento e manutenção da rede. No caso de Berlim, a concessão foi feita durante a reunificação alemã e possuía regras confusas. No caso de Buenos Aires, o modelo de regulação previsto foi abandonado. A agência reguladora tripartite foi deixada de lado, com as decisões passando para a administração direta. A situação de crise macroeconômica foi a gota d´água e em 2006 o Governo Federal cancelou o contrato de concessão.
É preciso ponderar que não há uma regra que determine que o serviço prestado pela empresa privada seja melhor. Há exemplos de bons serviços prestados por empresas públicas também. É preciso que haja bons projetos, boa regulação e segurança jurídica, além de investimentos. O novo marco garante tais condições e, nesse caso, é possível dizer que o Brasil terá bons exemplos. A questão é que sem dinheiro para investir, a tendência é que os investimentos em saneamento sejam canalizados para outras áreas, daí a participação privada é crucial para garantir o aumento e não a queda em investimentos.
Mesmo supondo que se alcance a chamada universalização em 2033, ela não será relativa? Os índices de atendimento não levam em consideração áreas não regularizadas pelas prefeituras. Então, para efeitos de saúde pública, muito esgoto ainda continuará chegando aos corpos d´água. O que pode ser feito nesse sentido?
Os desafios são grandes, mas é necessário estabelecer metas e cumpri-las. O saneamento básico não é algo como ir para Marte, mas é algo complexo que exige vontade política e social. Existe um esforço do poder público e da sociedade para dar prioridade ao saneamento. O novo marco legal é um reflexo desse esforço. Eventualmente haverá lacunas regionais, mas o novo marco em seu texto expõe a necessidade de atingir irregulares.
Mas o fato de serem irregulares não cria uma brecha para as empresas privadas não precisarem investir nessas áreas, deixando o fator ambiental para segundo plano?
O artigo 3-B do novo marco, no parágrafo único, diz: “Nas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) ou outras áreas do perímetro urbano ocupadas predominantemente por população de baixa renda, o serviço público de esgotamento sanitário, realizado diretamente pelo titular ou por concessionário, inclui conjuntos sanitários para as residências e solução para a destinação de efluentes, quando inexistentes, assegurada compatibilidade com as diretrizes da política municipal de regularização fundiária.”
O fato de ser irregular é um desafio para as políticas de habitação das cidades. O novo marco estimula a adequação destes locais para receber água e coleta de esgoto adequadas. Sem o novo marco não há nem o compromisso público ou privado para investimentos em áreas irregulares. E o fator ambiental, inclusive considerando áreas irregulares, deve ser previsto nas licitações para contratação dos serviços, por exemplo.
A SpaceMoney tem, entre seus leitores, muitos investidores. O senhor acredita que investir em empresas de saneamento é uma boa opção no longo prazo?
O setor de saneamento tem papel importante para o meio ambiente, em um momento onde cresce o interesse de investidores por empresas que adotem políticas ESG. As empresas que apresentarem serviços adequados às soluções ambientais têm grande potencial para crescer. Além disso, o Brasil tem grande potencial para essas empresas, já que o novo marco deve incentivar a expansão das empresas privadas, que atualmente participam de uma parcela ínfima do mercado.
O senhor acredita que haverá participação relevante de empresas estrangeiras nos projetos de saneamento a partir de agora?
Sim, já existe grande interesse no setor por parte das empresas estrangeiras que buscam compreender como funcionam os serviços de saneamento básico no Brasil e o que muda com o novo marco.