Mudanças climáticas

Com queimadas recordes, Lula vai conseguir cumprir plano de governo sustentável até o fim do mandato?

Roldan Muradian, biólogo e economista da UFF, critica a falta de ação climática no Brasil, ao apontar que o governo só reagiu quando fogo criminoso passou a ‘torrar’ dinheiro

Em meio ao avanço das queimadas que já varreram, só neste ano, mais de 22 milhões de hectares de terras no Brasil, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se vê diante de mais um impasse profundo: a conciliação entre o crescimento econômico e a necessidade urgente de proteger o meio ambiente.

Durante seu discurso na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro, o presidente reafirmou um compromisso bem explorado por ele no período de campanha eleitoral, em 2022: proteger a Amazônia e combater as mudanças climáticas

No entanto, a declaração de Lula surgia no mesmo momento em que o Brasil enfrentava seus dias mais críticos de devastação ambiental dos últimos 14 anos.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o número de queimadas em setembro bateu um novo recorde desde 2010, com o registro de 79.499 focos de fogo no Brasil.

Esse cenário revela uma dissonância entre o discurso internacional e a realidade interna do Brasil, uma vez que, desde o início de seu terceiro mandato, Lula tem se voltado muito mais a expandir atividades econômicas, que exploram recursos naturais e intensificam crises climáticas, sem aplicar nenhum tipo de contrapartida.

Queimadas e os negócios

2023 já dava indícios de que o Brasil iria enfrentar uma crise de seca extrema e consequentemente, aumento das queimadas, se medidas de prevenção não fossem adotadas. 

Essa afirmação é do professor e biólogo Roldan Muradian, da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele critica a demora do governo brasileiro em implementar uma política climática coordenada.

Para Muradian, o País só agiu quando o fogo passou a ‘torrar’ dinheiro.

“As ações precisam ser transversais e envolver planejamento econômico de longo prazo, algo que não vi acontecendo até o fogo chegar no agronegócio paulista”, afirmou.

As falas do professor apontam ao fato de que, desde que as queimadas chegaram no estado de São Paulo, em agosto, os incêndios criminosos em áreas de vegetação passaram a ter mais atenção da mídia e autoridades civis.

O assunto ganhou mais relevância na escala nacional, à medida que o prejuízo dos delitos era precificado.

Atualmente, estima-se que o Estado tenha perdido mais de R$ 2 bilhões com as queimadas, pelo impacto nas atividades de gado de corte, leite, cana-de-açúcar, frutas, mel e derivados, celulose e extração de látex. 

A partir daí, somado ao cenário extremamente preocupante que o Pantanal e a Amazônia enfrentavam, o governo anunciou um pacote de medidas para conter e punir as práticas criminosas e antigas de manejo do fogo no Brasil.

Entre as ações, foi anunciado um investimento de R$ 514 milhões em combate ao fogo e à seca.

Além disso, o governo encaminhou reforço no apoio a ações de fiscalização e prevenção, com as operações realizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), assim como a instituição de uma autoridade climática por meio de Medida Provisória (MP)

Em defesa do seu governo, Lula situou os desastres climáticos como uma realidade mundial, declarou que a natureza resolveu “colocar as garras de fora” em reação à degradação provocada pela mão humana e, logo em seguida, apontou para a existência de uma “anormalidade”, que teria ares de conspiração.

“Algo me cheira a oportunismo também de alguns setores tentando criar confusão neste país. O que queremos é autorização para fazer as investigações, porque, se as pessoas estiverem cometendo esse tipo de crime, a lei tem que ser exercida na sua plenitude”, afirmou.

Com o avanço das queimadas pelo País, Lula sobrevoo áreas em queimadas, em setembro. – imagem: instagram/Ministério do Meio Ambiente)

Fogo em excesso no Brasil é falta de prevenção ou é culpa do agro?

O uso do fogo no Brasil tem raízes históricas. O elemento é uma ferramenta comum em atividades rurais, principalmente na pecuária. 

Diante disso, a Lei do Manejo Integrado do Fogo (n. 12.651/2012) estabelece diretrizes para o uso controlado do fogo em atividades rurais e ambientais no Brasil. 

Ela autoriza o emprego do fogo como ferramenta de manejo em determinadas situações, como no controle de pragas agrícolas e na preservação de práticas tradicionais de povos indígenas e comunidades locais, desde que feito de maneira controlada e com autorização prévia. 

No entanto, Ana Alencar, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e coordenadora do MapBiomas Fogo, alerta: o que o Brasil vive hoje, com as queimadas, está longe de uma prática de manejo controlado do fogo.


“O que estamos vendo com bastante frequência, atualmente, é o uso do fogo de forma criminosa, usado com a intenção mesmo de queimar uma área de vegetação nativa, especialmente em regiões de grilagem, onde as pessoas querem fomentar a degradação para ocupar terras”, afirma Alencar.

Com a explosão das queimadas, a Polícia Federal (PF) tem reforçado suas ações contra os incêndios criminosos no Brasil. Até o momento 101 inquéritos foram abertos para investigar queimadas ilegais. 

Nas duas primeiras semanas de outubro, cerca de 10 pessoas foram presas ou detidas por incendiar áreas da Amazônia Legal, segundo a PF. 

A PF também apreendeu gado, veículos, maquinários e armas. Isto, conforme a corporação, evidencia organizações criminosas envolvidas nos desmatamentos e queimadas.

Diante disso, a pesquisadora do IPAM e MapBiomas aponta que o Brasil tem um problema crônico: a falta de implementação e cumprimento de políticas ambientais. 

Ela destacou que, embora o Brasil possua instrumentos importantes, como o Código Florestal, essas leis são raramente aplicadas de maneira eficaz. 

“O que precisamos é de mais investimentos em prevenção e no manejo integrado do fogo, além de maior engajamento da sociedade nas ações de contenções de crises”, argumenta.

Desde a gestão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL), o IBAMA e o ICMBio enfrentam uma escassez de recursos e pessoal, o que resultou em uma queda significativa no número de multas e autuações ambientais. 

O número de multas aplicadas pelo IBAMA teve queda no primeiro semestre deste ano. Foram 4,3 mil até junho, ante 10,2 mil no mesmo período do ano passado.

A quantidade de autos de infração aplicados é semelhante ao que foi registrado nos anos de pandemia, com cerca de 4,5 mil em 2020 e 2021.

Desde a gestão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL), o IBAMA e o ICMBio enfrentam uma escassez de recursos e pessoal, o que resultou em uma queda significativa no número de multas e autuações ambientais. 

O número de multas aplicadas pelo IBAMA teve queda no primeiro semestre deste ano. Foram 4,3 mil até junho, ante 10,2 mil no mesmo período do ano passado.

A quantidade de autos de infração aplicados é semelhante ao que foi registrado nos anos de pandemia, com cerca de 4,5 mil em 2020 e 2021.

Segundo Alencar, a pecuária extensiva continua como uma das principais fontes de incêndios, especialmente com o uso irresponsável do fogo para renovar pastagens. 

“Sem o manejo sustentável adequado, essa prática resulta em danos irreparáveis à biodiversidade, à regulação hídrica e à capacidade da floresta de absorver carbono — elementos vitais para a manutenção do equilíbrio climático e ambiental”, destaca a pesquisadora.

As mudanças climáticas e a economia

André Sant’Anna, professor associado no Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE) da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que, para o Brasil caminhar entre o desenvolvimento econômico e a proteção do meio ambiente, é preciso repensar a abordagem de algumas atividades econômicas pelo País.

O professor destaca que os efeitos das mudanças climáticas não são apenas ambientais, mas afetam diretamente a economia, sobretudo setores que dependem de recursos naturais e estabilidade climática, como o próprio agronegócio e a produção de energia.

“As perdas econômicas geradas por eventos extremos, como secas e queimadas, são imensas e se refletem no aumento dos custos de produção e na redução da produtividade agrícola. A economia brasileira, que muitas vezes é vista como dependente da exploração dos recursos naturais, está sendo minada justamente por essa falta de preservação”, explica.

Ele ainda sublinha que o crescimento econômico desenfreado e a busca por lucros imediatos têm gerado um ciclo vicioso de degradação ambiental, o que coloca em risco as próprias bases sobre as quais a economia rural do país foi construída. 

“É crucial que o Brasil se comprometa com uma transição econômica que integre a sustentabilidade de forma estrutural. O desenvolvimento não pode ser pensado sem levar em consideração os limites impostos pela natureza e pela própria sobrevivência do planeta”, acrescenta.

Sant’Anna acredita que o governo precisa abandonar a ambiguidade e tomar decisões que, de fato, coloquem o meio ambiente como prioridade. 

“Estamos lidando com a perda de capital natural. As florestas têm um valor econômico que vai além do visível”, reforça.

Para ele, a solução passa pela implementação efetiva de políticas ambientais, que precisam ir além dos discursos e promessas internacionais, como o feito pelo presidente Lula na ONU.

“A economia brasileira depende de uma Amazônia viva, de um Cerrado preservado. A degradação que acontece agora ameaça não apenas a biodiversidade, mas também a viabilidade de uma economia equilibrada e justa para as gerações futuras”, conclui Sant’Anna.

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