Ninguém mereceu mais o prêmio Nobel da Economia sem tê-lo recebido que o chinês Deng Xiaoping. No final dos anos 1970, a partir de uma prosaica frase ─ “Não importa a cor do gato, contanto que ele cace o rato” ─ o então líder supremo da China deslanchou o mais longo e pujante período de crescimento de um país em toda a história econômica do planeta. A título de comparação, lembremos que o enorme crescimento dos EUA do século XIX e em quase todo o século XX não se fez sem períodos de graves crises como a Grande Depressão e, em alguns períodos (1860-65, 1914-18 e 1939-45), foi bastante impulsionado pela economia de guerra, que demandou grandes esforços de produção industrial e avanços tecnológicos. Igualmente, a Alemanha e o Japão tiveram extraordinárias performances em suas economias na segunda metade do século passado, assim como o Brasil até a década de 1970 do mesmo século.
Entretanto, nenhum desses países cresceu durante 40 anos seguidos e com índices tão expressivos quanto a China. O PIB do país passou de 150 bilhões de dólares, em 1979, para algo em torno de 13 trilhões de dólares, em 2019. Ou seja, aumentou quase noventa vezes, com um crescimento médio de mais de 10% ao ano nesse período. Mas o que também chama a atenção é que decorridas quatro décadas, nenhum outro país conseguiu sequer se aproximar de semelhante desempenho. Por certo, há singularidades na economia, organização política e cultura chinesas que não se repetem em nenhum outro lugar, mas não são suficientes para explicar por inteiro esse fenômeno.
Seja “Capitalismo de Estado” como classificado pelos americanos, seja “Socialismo com características chinesas” como preferem seus governantes, o fato é que o mundo se acostumou com esse crescimento fora de todos os padrões. Mais do que se acostumar, o mundo surfa, com inegável prazer, e certa irresponsabilidade, nessa onda. No início era a oferta abundante de mão de obra barata, que transformou o país na oficina do mundo. Depois, a inesgotável quantidade de matérias primas e alimentos, que essa nova força econômica e sua nascente classe média passaram a absorver. Em 2019, todos lamentaram que a economia chinesa crescesse “apenas” 6% (seis por cento). Será que esqueceram de Greenspan e de sua descoberta tardia ─ a exuberância irracional?
O fato é que o mundo ficou dependente da China, e de seu crescimento, e mal se daria conta disso não fosse o surgimento do novo Coronavírus. Subitamente, as cadeias globais de suprimentos se viram paralisadas e fábricas interromperam a produção, algumas por falta de matérias primas e componentes, outras pela momentânea ─ assim esperamos ─ anemia do maior mercado consumidor. Todas as previsões de crescimento global esfarelaram-se da noite para o dia, levando consigo as projeções de quase todos os países do mundo, profundamente dependentes de suas transações com o gigante amarelo. Vendedores e compradores estão com o sorriso amarelo ─ desculpem o infame trocadilho ─ aguardando o que vai acontecer até o final do inverno no Hemisfério Norte.
No meu tempo dizia-se que, exceto disco do Fábio Júnior, tudo na vida tinha um lado bom. E, talvez, a despeito de todos os malefícios que a Covid-19 tem trazido, cujos impactos ainda não podem ser devidamente dimensionados, essa pode ser a oportunidade que o mundo tem de passar a olhar para a China não apenas sob a ótica de seu imenso mercado, mas, também, sob dois aspectos pouco lembrados e estudados: um padrão a ser buscado em termos de planejamento e condução da atividade econômica e uma ameaça global.
Ameaça global? Não há exagero e alarmismo nessa preocupação? Talvez. Mas não nos esqueçamos que a China, apesar do seu gigantismo, se mostra menos dependente do mundo do que o contrário. Investe bilhões de dólares nos mais diversos países, periféricos e centrais, para garantir perenidade no suprimento de matérias primas, alimentos e tecnologia indispensáveis ao seu desenvolvimento. Mantém absoluto controle sobre os investimentos externos em sua economia e, até bem pouco tempo, arbitrava a paridade de sua moeda, de acordo com o interesse do seu mercado.
Donald Trump, antes de qualquer líder ocidental e mais que seus antecessores, percebeu a ameaça que pode representar a China como superpotência econômica, tecnológica e militar. O conceito de democracia, por exemplo, é absolutamente estranho à história e à cultura chinesa. A China era, nos séculos XIV e XV, a maior potência econômica e naval do mundo. Em algum momento, recolheu-se e só reapareceu quatrocentos anos depois num estágio quase medieval. Sofreu com as humilhantes derrotas para os ingleses nas Guerras do Ópio, foi invadida e subjugada pelo Japão nos anos 1930 e 1940, e tornou-se comunista em 1949. Sobreviveu, com grandes perdas, nos anos 1960, à “Terrível Fome do Grande Salto Adiante” e aos expurgos da Revolução Cultural, ambas patrocinadas pelo grande timoneiro, o camarada Mao.
Sem o mais remoto sinal de mudança, permanecem incólumes o sistema de partido único, que reduz o número de atores políticos; a férrea censura à internet e a notícias que desagradem ao regime; a falta de transparência dos indicadores econômicos; o apoio à Coréia do Norte; e, o mais preocupante, um orçamento militar sem precedentes, incluindo o programa espacial. Tal como Putin, o enigmático Xi Jinping flerta com a permanência ilimitada no cargo e para isso já modificou a Constituição. Com todas essas vicissitudes ainda presentes, o que impediria os líderes chineses, diante de um mundo enfraquecido e dependente, de tentarem impor sua ideologia e seus interesses ao resto do mundo? A Terceira Guerra? Que certamente será a última.