Uma das mais recorrentes manias de nós, os brasileiros, é buscar singularidades em nossa História, em nossa Língua e em nossa posição no mundo. Do mito Tiradentes, nascido por ocasião e necessidade da República; da palavra saudade, que só existiria na Língua Portuguesa, invenção dos que conviveram com os primeiros imigrantes, que, é claro, nunca falavam em saudades da fome, das guerras e da penúria que os fizeram partir. Por óbvio, reco-reco, maracutaia, gol de letra etc. também não existem em outras línguas. Outra importante “singularidade” é o fato de nos considerarmos o “país do jeitinho”, como se a improvisação, a esculhambação e o compadrio fossem exclusividades dessa terra, que julga ser, entre outros grandes feitos e mazelas, o berço natal do Criador. Há alguns subprodutos dessa mania, sendo o mais famoso o rodriguiano “complexo de vira-latas” e outro, menos famoso, mas muito mais nefasto: o conceito de que aqui a democracia não funciona.
O maior período democrático ininterrupto de nossa história durou setenta e cinco anos, desde a primeira Constituição do Império até o golpe militar que proclamou a República. Depois, mais trinta e nove anos de democracia, da Constituição de 1891 até o fim da República Velha. O curto interregno constitucional do primeiro governo Vargas foi interrompido pelo Estado Novo em 1937. Após a queda do “pai dos pobres”, em 1945, tivemos mais dezoito anos de democracia até novo golpe militar, em 1964. Seguiram-se vinte um anos de autoritarismo, encerrados pela promulgação da Constituição de 1988. Em cada uma das interrupções dos ciclos democráticos, a justificativa – melhor seria dizer, as desculpas − dos golpistas foram as crises institucionais pelas qual a nação atravessava.
Poderiam ser críveis essas justificativas se os conspiradores desconhecessem que seu modelo, os Estados Unidos da América, manteve a sua democracia mesmo durante e depois da Guerra Civil, da Grande Depressão e de um sem-número de guerras. Duas devastadoras guerras mundiais não abalaram um único andaime dos edifícios democráticos da França e do Reino Unido. E mesmo a dolorosa recuperação dos derrotados naquelas guerras se fez em ambientes amplamente democráticos e os resultados perduram à vista de todos.
Por aqui, ocorre o contrário. Ao menor sinal de atrito institucional ou social – condição inevitável e onipresente nos regimes democráticos − levantam-se as vivandeiras de quartel – expressão criada pelo Marechal Castelo Branco, que do assunto entendia – ou em mais atual expressão, facções políticas dispostas a atiçar os militares e fazê-los intervir em favor de seus interesses. Quando conseguem seu intento, e o conseguiram várias vezes, julgam poder controlar o poder armado que convocaram. Pelo menos uma vez, em 1964, deu muito errado essa estratégia e os líderes civis da chamada “Revolução” acabaram cassados e banidos da vida pública. Seus atuais herdeiros e sucessores parecem não ter aprendido a lição.
As campanhas das eleições presidenciais de 2018 deixaram de discutir pontos relevantes e estratégicos. Ficou centrada na discussão da corrupção, cada qual atacando-se ferozmente uns aos outros e protegendo seus corruptos de estimação. Sem desconhecer o imenso prejuízo econômico, financeiro e moral causado pela corrupção, valho-me do conhecido exemplo da Petrobrás para contrapor que a má gestão é tão ou mais danosa que a corrupção. A política de preços, a política salarial e de previdência e a venda precipitada e pouco transparente de ativos impactaram, negativamente, a empresa em valores muito superiores aos R$ 6 bilhões surrupiados de seus cofres, de acordo com a Lava Jato. A gestão Graça Foster – precocemente “desaparecida” – foi uma das piores da história da empresa, sem que a referida senhora tenha sido protagonista de algum escândalo ou inquérito. Resumindo esse parágrafo: discute-se muito pouco no Brasil a gestão dos bens públicos e isso não é bom.
Em abril de 2020 estamos longe de uma crise institucional ou social, ainda que não falte quem as deseje ou tente promover. Tudo o que não é precisamos é criar outra crise em meio a esse vendaval de preocupações e más notícias na saúde e na economia. Embora desgastada por inúmeras frustrações e dificultada pelo tóxico ambiente da relação entre os poderes, os entes federativos e das facções políticas, é preciso recuperar a ideia de um pacto social. Na Espanha o chamam de Pacto da Reconstrução Nacional e já começou a ser discutido pelos partidos. Não conheço detalhes da discussão espanhola, mas penso que para o Brasil – e lá também, suponho – não se trata de reconstrução das instituições e, tampouco, de alterações significativas nas estruturas sociopolíticas. São objetivos relevantes, mas por demais ambiciosos para gerar resultados de curto e médio prazo. Estaremos muito bem servidos se o nosso, ainda hipotético, Pacto de Reconstrução focar na recuperação da economia, no fortalecimento do nosso extraordinário e pouco valorizado sistema universal de saúde e aumento da abrangência e controle dos programas sociais. Nesse último tópico causou surpresa e desapontamento, para não dizer indignação, a elevada quantidade de “invisíveis”, pessoas ausentes de qualquer cadastro e totalmente alheias à proteção e controle do Estado.
Exatamente nessa semana começam, quase no mundo todo, Brasil inclusive, as iniciativas de gradual reabertura da economia, cercadas ainda de muitas incertezas. Falando, especificamente, de nosso país, parece lógico um afrouxamento das restrições nas pequenas cidades, fora das regiões metropolitanas. O mesmo não se pode dizer dos grandes centros e suas imediações. Nas áreas metropolitanas sequer foi atingido o pico da pandemia e a rede hospitalar já esta estressada, quando não colapsada como em Manaus. Em todo o país faltam insumos e equipamentos de tratamento e de proteção individual. Faltam coordenação, coerência e responsabilidade das autoridades responsáveis. Sobram esforço, dedicação e denodo dos profissionais de saúde. Sobram a carência, a fome e o desespero de milhões. Não tem faltado a solidariedade de outros milhões de brasileiros, que podem obedecer as regras da quarentena, mas não esquecem dos que estão lá fora os protegendo e servindo.
Infelizmente, também, existem os oportunistas, que discutem ideologicamente uma questão de saúde pública,que desdenham da gravidade da doença e que espalham inverdades para justificar suas crenças e opiniões; Temos, ainda, os adeptos das teorias da conspiração e os que se julgam detentores de uma verdade não avalizada por nenhum governo, agências de saúde, laboratórios e universidades com respeito global. São os de sempre: os terraplanistas, os negacionistas, os criacionistas, criaturas que voltaram a mergulhar nas trevas medievais ou de lá nunca saíram.
Enfim, o momento exige muito mais que tudo isso. Exige respeito às vitimas e seus familiares, amplas e desapaixonadas discussões sobre o presente e o futuro – o passado terminou em 31 de Dezembro de 2018, segundo eles mesmos −, inteligência, criatividade e solidariedade para a definição de novas políticas, a revalorização da Política e a defesa intransigente dos valores democráticos. Se dermos a tudo isso o nome de pacto disso ou daquilo pouco importa. Importa é começarmos. O resto é barulho.