“Empreendedorismo”, uma palavra que nunca esteve tão na moda como atualmente. Ao abrir o jornal ou ao assistir um programa de televisão, virou rotina, quase um dogma, ver alguém evocar a questão de que pessoas devem investir em negócios próprios, sempre utilizando como exemplos casos de sucesso, normalmente de empresas existentes e iniciadas no continente europeu ou nos Estados Unidos.
O discurso é tentador: deixar um emprego cheio de regras, horários e hierarquia para viver em um ambiente descontraído e descolado, com a possibilidade de ser o dono do seu próprio negócio, correndo o risco, no final do dia, de enriquecer de uma maneira exponencial, quando comparado a uma carreira tradicional. De fato, essa iniciativa é louvável e nosso país precisa de pessoas com esse espírito empreendedor para se desenvolver.
Ovo de Colombo
Façamos juntos uma pequena digressão: imaginemos que estamos em uma sala de reunião da matriz de uma grande empresa do setor de alimentos, em uma reunião com sua alta administração, quando o diretor de novos negócios pede a palavra, para apresentar o “Ovo de Colombo”.
Ele explica com riqueza de detalhes se tratar de uma tecnologia disruptiva onde cada cidadão de alta renda passaria a ter máquina de café expresso em sua casa, podendo fazer um café com o mesmo padrão de qualidade que se pode degustar em uma padaria ou restaurante. É de se esperar que todos tenham sido céticos, descrentes ou até mesmo “caído em gargalhas”.
Mas estamos falando de um produto que é realidade e um case de sucesso, um fenômeno em vendas global, que foi capaz de gourmetizar uma commodity como o café, possibilitando que o produto café passasse a ser comercializado pelo preço de aproximadamente R$ 400,00 o quilo (considerando que cada cápsula possui 6 gramas), enquanto um quilo de café de qualidade similar é comercializado a no máximo por R$ 10,00.
“Jaboticabas” jurídicas
Sim, todos estamos em busca de atingir o Olimpo, mas a realidade é que esse lugar está de fato restrito a um grupo muito seleto de empreendedores. Em regra, para desenvolver uma empresa que seja capaz de gerar lucros, é necessário superar inúmeras diversidades. Além de todos os obstáculos usuais para o empreendedor, no Brasil ainda é necessário superar diversas “jabuticabas” jurídicas e procedimentais (regras próprias que somente encontramos aqui), que são colocadas no caminho do sucesso dos espíritos empreendedores.
Uma delas, que iremos abordar aqui com mais atenção, é a necessidade de captação de recursos por meio de endividamento e de prestação de garantias para viabilizar tais endividamentos. Após passar por toda a burocracia para a aprovação de cadastro perante as instituições financeiras, bem como pela necessidade de preenchimento de uma série de fichas cadastrais e envio de documentação, enfim o empreendedor chega à etapa de constituição de garantias.
Essa é uma etapa crucial para a tomada de crédito, que determina a qualidade do devedor (capacidade de pagar o empréstimo), a taxa que será aplicada pela instituição financeira vis a vis, a viabilidade e executabilidade da garantia apresentada e a efetiva possibilidade de se liquidar a garantia para pagamento da dívida em caso de default da tomadora do crédito.
Aval do cônjuge
Uma garantia tradicionalmente exigida pelas instituições financeiras é o aval dos sócios da tomadora do crédito (estamos tratando de empréstimo à pessoa jurídica), principalmente em razão de as sociedades recém criadas não possuírem histórico financeiro para ser analisado, nem ser possível se aferir a sua resiliência quanto ao desenvolvimento dos negócios, devido à sua prematuridade. O aval, de fato, se mostra como um instrumento eficaz uma vez que os sócios, por meio dessa garantia fidejussória, se responsabilizam pela dívida, colocando como garantia seu próprio patrimônio para assegurar o cumprimento da obrigação financeira assumida pela sociedade.
Assim, o aval seria um instrumento excelente, não fosse pela necessidade de prestação da outorga uxória, que se trata de uma obrigação contida no Código Civil*, segundo a qual, salvo para os cônjuges casados em regime de separação total, é necessária a expressa anuência do outro cônjuge para prestação dessa garantia.
É isso mesmo! Para que seja possível a contratação de uma simples linha de crédito direcionada a garantir o capital de giro de uma empresa, e pela qual a instituição financeira exija a prestação de aval, é necessário que os cônjuges assinem conjuntamente o endividamento! Ou seja, para que possa dar andamento ao seu empreendimento, o empreendedor tem de solicitar a assinatura de seu cônjuge, que muitas vezes não tem qualquer ligação com tal projeto e tampouco o apetite para risco encontrado nos espíritos empreendedores.
Não fosse todas as dificuldades que empreendedor enfrenta, ainda precisa explicar a outorga uxória para seu cônjuge e convencê-lo a assinar um instrumento de dívida, trazendo um elemento conjugal para atividade empresária.
Credor “mete a colher”
Em uma análise inicial, o argumento utilizado pelo legislador brasileiro ao instituir a outorga uxória até parece coerente, qual seja: o cônjuge não atua como avalista, mas ele fica ciente e concorda que o patrimônio do casal eventualmente pode ser reduzido, caso o avalista seja obrigado a honrar com uma obrigação pecuniária não cumprida pelo devedor originário/a empresa.
Contudo, na prática, tal procedimento sempre se demonstra como um fator a mais que dificulta o empreendedorismo, demonstrando um descolamento entre a vontade do legislador e a dura realidade da rotina de uma empresa. Apesar de guardar coerência lógica, isso, na prática, faz com que o sócio tenha de envolver literalmente sua família no negócio, o que gera uma série de desconfianças, incertezas e questões de foro conjugal e íntimo que acabam sendo trazidos para a atividade empresária.
É preciso que o legislador se debruce sobre a questão, na esteira dos princípios trazidos pela Lei da Liberdade Econômica, que visa facilitar e fomentar a atividade empresária. Caso contrário, continuaremos com a máxima em relação ao empreendedor brasileiro: “em briga de marido e mulher só o credor mete a colher”.
* Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III – prestar fiança ou aval; IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada
A opinião e as informações contidas neste artigo são responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, a visão da SpaceMoney.
Leia outros artigos de Tales de Moraes Moreno: