Vício em apostas

Para além da economia: explosão de bets no país revela vulnerabilidade emocional e nova lei do setor não abrange o problema

Instituições e especialistas questionam inadimplência e saúde psicológica de pessoas que apostam, enquanto novas regras para empresas do segmento passam a valer a partir do dia 1º de janeiro de 2025

Para além da economia: explosão de bets no país revela vulnerabilidade emocional e nova lei do setor não abrange o problema
Crédito: Agência Brasil

Nas últimas semanas um assunto tomou conta dos sites e jornais na televisão: a regulação do setor de apostas esportivas — as chamadas bets. O governo correu para regulamentar esse mercado e, a essa altura, vale questionar se as regras serão o suficiente para conter uma crise que é econômica, mas também é, sobretudo, psicológica. 

Pesquisas recentes relatam como o mercado de apostas impacta o orçamento de famílias carentes, a saúde emocional de pessoas de todas as classes sociais e até mesmo o aumento da inadimplência. No entanto, a prática de apostar não é nova no Brasil.

Setor sem regulação e investimento pesado em publicidade: o cenário perfeito

Desde dezembro de 2018, as apostas esportivas são previstas em lei como uma operação legítima no país. A regulamentação do setor, no entanto, só foi construída agora, 5 anos depois, em um momento em que essas empresas explodiram no território nacional.

De 2021 a abril de 2024, foi registrado um crescimento de 734,6% nas companhias do segmento, segundo um levantamento feito pela plataforma de análise de dados Datahub. A quantidade de bets saltou de 26 em 2021 para 217 neste ano.

Em junho, a organização não-governamental Instituto Jogo Legal (IJL) estimava um total de dois mil sites de apostas esportivas e de cassinos virtuais. Muitas dessas plataformas atuavam de forma ilegal e sem pagar o prêmio dos apostadores. 

Falta de informações sobre o assunto é mais um ingrediente

O que mais influenciou no crescimento desse mercado, segundo André Gelfi, presidente do Instituto Brasileiro do Jogo Responsável (IBJR), foi o “terreno fértil” no país. 

“A falta de familiaridade do brasileiro com essa atividade aumenta o risco. O brasileiro não conhece a atividade de forma profunda e consequentemente o risco de meter os pés pelas mãos é maior”, explica.

Nos últimos anos, passou a ser comum encontrar o anúncio de bets em propagandas televisivas, em patrocínios nas partidas de futebol, e em outros meios.

Em abril de 2023, o Governo Federal estimou que as apostas esportivas movimentavam cerca de R$ 3 bilhões para o futebol, abrangendo acordos de patrocínio, publicidade em camisas de times, placas em campeonatos e espaços na mídia. Em dezembro de 2023, números indicavam que o valor estava na casa dos R$ 3,5 bilhões.

Já no segmento de marketing, estima-se que o investimento em mídia tenha sido superior a R$ 2,07 bilhões, conforme divulgado pela Propmark.

Outro tipo de publicidade comum no setor é a de influenciadores em redes sociais como o Instagram. Recentemente, a influenciadora Deolane Bezerra e o cantor sertanejo Gusttavo Lima foram investigados em supostos casos de fraude e lavagem de dinheiro nas empresas Vai De Bet e Esportes da Sorte.

Para Gelfi, plataformas como TikTok, Meta e Google precisam se responsabilizar pelo conteúdo orgânico produzido por influenciadores

“Não faz sentido ter a capacidade de não permitir pornografia, armas e conteúdo violento e dizer que não tem o que fazer em relação a jogos. Não dá para aceitar a isenção dessas plataformas, elas também são responsáveis pelo que está acontecendo”, pontua. 

Por que as apostas podem se tornar um vício?

A princípio, a sua primeira aposta pode ser motivada pelo entretenimento, por um palpite no seu time de coração ou até mesmo para sacanear o rival.

E talvez suas apostas seguintes, em pequenas quantias de dinheiro, também sejam motivadas pela adrenalina e pela emoção daquele momento. 

Um levantamento realizado pela FecomércioSP, entre os apostadores em sites na cidade de São Paulo, mostrou que aproximadamente 60% afirmam que o principal motivo para apostar é a diversão ou o entretenimento.

No entanto, a prática pode se tornar perigosa, quando passa a ser um vício. De forma anônima, Carla (nome fictício), de 42 anos, contou à SpaceMoney que está se divorciando do marido após ele perder todo seu patrimônio em jogos de azar e bets. O casal possui dois filhos. 

Anderson Santos de Jesus, psicólogo e responsável pelo Núcleo de Atendimento Psicopedagógico da Faculdade Santa Marcelina, explicou que, do ponto de vista psíquico, o vício em apostas pode ser entendido como manifestação de vulnerabilidade emocional

“Basta pensarmos da seguinte forma: o ato de apostar em si oferece uma sensação de controle e de poder ilusório sobre o futuro, especialmente para as pessoas que buscam fugir de ansiedades e fracassos do cotidiano”, analisa.

Por que as pessoas continuam apostando, mesmo após perdas financeiras?

O psicólogo explicou que a aposta vai ativar o circuito de recompensa no cérebro do apostador, que é uma área responsável pela liberação da dopamina e proporciona a sensação de prazer e de excitação. 

“Esse ciclo vai ser reforçado fazendo com que a pessoa busque cada vez mais apostas para que essa recompensa se mantenha mesmo quando ocorrem acúmulos de perdas. Esse é um fator que conhecemos como desregulação de controle inibitório, que é o grau de impulsividade do sujeito em apostar. Ele já não mede consequências porque esse ciclo de recompensa está sendo retroalimentado o tempo inteiro”, observa. 

Além disso, o especialista também relata que o aumento do vício em bets evidencia diversas carências da população. 

“O vício em apostas têm crescido nos últimos anos devido a uma combinação de fatores sociais, psicológicos, tecnológicos, pelo fácil acesso às plataformas online de aplicativos de apostas. Além disso, nós temos um cenário econômico instável e a busca por soluções rápidas para problemas financeiros também impulsiona as pessoas a tentar a sorte nesses sites”, pontua.

Regular é o suficiente?

Para Anderson, regular é crucial, mas não é a única medida que deve ser tomada pelo governo. “Campanhas de conscientização apenas não vão dar conta da situação. É necessário o estado colaborar com instituições de Saúde Mental para que elas criem diretrizes que ajudem a identificar e a tratar as pessoas que estão dentro dessa condição”, pontua.

Em entrevista a jornalistas nesta quinta-feira (3), a ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse que consequências do vício em jogos são um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo.

“Na saúde, sempre temos de olhar ao mesmo tempo a questão da prevenção e promoção da saúde nessa questão dos jogos […] Os programas educativos são fundamentais”, ressaltou. 

O Governo Federal estuda apresentar um pacote de medidas direcionadas aos beneficiários do programa Bolsa Família que sejam dependentes em apostas on-line. Uma das ações é o encaminhamento de beneficiários diagnosticados com compulsão em jogos para tratamento e acompanhamento no SUS (Sistema Único de Saúde).

As medidas estão sendo articuladas pelos Ministério da Saúde e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, segundo apuração da CNN Brasil.

Impacto das bets na inadimplência causa preocupações  

O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, afirmou que o avanço das apostas esportivas no país pode levar a um aumento da inadimplência, trazendo um problema à frente. 

Um relatório do BC revelou que, no mês de agosto, cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família destinaram R$ 3 bilhões para casas de apostas virtuais.

Este montante representa 21% do total de R$ 14,10 bilhões desembolsados pelo governo federal em benefícios do programa no mesmo mês. 

Uma pesquisa do Instituto DataSenado apurou que 42% dos apostadores têm dívidas em atraso há mais de 90 dias. O estudo teve acesso a respostas de 21.808 pessoas com 16 anos ou mais.

A maior parte dos apostadores recebe até dois salários-mínimos (52%) por mês. A fatia que ganha entre dois e seis mínimos é de 35%, enquanto 13% afirmam receber uma remuneração superior.

A Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços) se antecipou e passou a impedir, desde a última quarta-feira (2), o uso do cartão de crédito para a transferência de recursos para casas de apostas. A organização ressaltou que visa evitar o superendividamento e o crescimento dessa prática no Brasil. 

O que muda no setor de bets após a regulação?

No governo do presidente Lula (PT), o debate em relação às bets levou à sanção presidencial da Lei das Apostas de Quota Fixa (Lei 14.790/2023), que estabelece diretrizes e regras para apostas virtuais e físicas em eventos esportivos e jogos online. 

Desde terça-feira, 1º de outubro de 2024, as casas de apostas que não obtiveram autorização do Ministério da Fazenda estão proibidas de funcionar no Brasil. 

As casas de apostas que não se adequaram às novas regras têm até 10 de outubro para permanecer no ar, exclusivamente para que os usuários possam resgatar valores depositados. 

Entre as regras estabelecidas pelo governo para poder atuar no Brasil estão:
  • A partir de janeiro de 2025, todos os sites de apostas definitivamente autorizados utilizarão o domínio brasileiro de internet, com extensão “bet.br”. 
  • Ainda este ano, as empresas aprovadas terão que pagar a outorga de R$ 30 milhões para começar a funcionar e, a partir de 2025, precisarão cumprir todas as regras para combate à fraude, à lavagem de dinheiro e à publicidade abusiva, entre outras.
  • Apenas empresas brasileiras poderão atuar no setor de apostas. Para atuar no Brasil, a empresa precisará constituir uma subsidiária nacional, com registro no CNPJ, sede no Brasil e diretores estatutários domiciliados brasileiros. 
  • A empresa também precisará ter brasileiro como sócio detentor de ao menos 20% do capital social da pessoa jurídica que solicita a permissão.

Para o presidente do IBJR, é “pouco provável” que uma empresa regulada que pagou R$ 30 milhões em uma licença para operar no país não deve proceder com conduta de contratar influencer para qualquer tipo de “esquema”.

“A gente tem uma regulamentação super exigente, mas viável do ponto de vista econômico. A partir do dia 1º de janeiro, teremos um cenário completamente diferente do que vemos hoje. Você vai ter um setor que fatura 20 bilhões de reais, vai ter geração de emprego, vai ter com quem falar, então será uma dinâmica diferente”, afirma Gelfi.