Foram anos de um relacionamento abusivo. De um dos piores dias, no entanto, Simone, lembra bem. Depois de uma briga, o ex-companheiro esvaziou os armários e a geladeira, pegou um táxi e saiu de casa. Mesmo sentindo-se humilhada, ela teve de pedir para que ele voltasse, por um simples motivo: não tinha dinheiro para comprar comida para ela e o filho.
Simone, que prefere não revelar o sobrenome, mora no bairro da Caneleira, em Santos, no litoral de São Paulo. Hoje, vive com dois filhos e está livre do relacionamento que tanto a fez sofrer. Agora, tem plena consciência de que a dependência financeira fez com que ela tivesse ainda mais dificuldade de se ver livre daquela situação abusiva.
Apesar de avanços, ainda há padrões sociais que afastam as mulheres das finanças e de uma relação saudável com o dinheiro.
Um estudo feito por pesquisadores da ESPM mostra que as mulheres têm menor acesso ao conhecimento financeiro, renda inferior em relação ao mesmo trabalho desenvolvido pelos homens, trajetórias de trabalho irregulares e associadas ao papel de cuidadora dos filhos e da família. E tudo isso abre caminho para a dependência dos maridos ou pais.
A violência doméstica e as finanças femininas acabam se relacionando. Além da intimidação psicológica, muitas vezes os companheiros utilizam estratégias para prejudicar o trabalho e táticas de isolamento, fazendo com que as mulheres se sintam economicamente dependentes e presas no relacionamento. Exatamente o que Simone viveu.
“Quando eu o conheci, não estava trabalhando e, logo, minha avó, que era como uma mãe, ficou doente. No começo, ele se mostrou muito bom, me supria em tudo e até levava as coisas para o tratamento da minha avó”.
A situação, porém, mudou quando a avó de Simone morreu. Ela conta que quis trabalhar, mas o então companheiro não deixava e tudo o que ela precisava, tinha de pedir para ele. “Eu não comprava roupa, tinha que pedir, e ele só comprou quando eu engravidei e nada do que eu tinha servia”.
Com o nascimento do segundo filho de Simone, o primeiro do casal, ela encontrou uma força que nem sabia que tinha. Com a ajuda da Ong Mulheres Solidárias – entidade que dá apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade – conseguiu apoio, inclusive psicológico, e foi se libertando do relacionamento abusivo. Agora, está reconstruindo a vida, com independência.
Para Rebeca Toyama, especialista em bem-estar financeiro, a situação vivida por Simone mostra o quanto é preciso chamar a atenção para a importância de apoiar as mulheres no desenvolvimento de habilidades que reduzam a vulnerabilidade financeira, como confiança, protagonismo, inteligência emocional e autocontrole. Porque os impactos na vida delas são muitos.
Impactos a longo prazo: dependência financeira após a aposentadoria
Alguns custos viram grandes vilões e tornam-se inviáveis considerando a aposentadoria de uma mulher média brasileira
Às vezes, a falta de educação financeira das mulheres tem efeito a longo prazo. “Mesmo nas situações em que o pai, marido ou irmão assumem unilateralmente as finanças com a intenção de proteger, o custo é o enfraquecimento da mulher, que na ausência do homem, seja por divórcio ou falecimento, não tem a experiência para cuidar das finanças domésticas”, explica Rebeca.
No caso dos idosos, de forma geral, o impacto para quem não se prepara para aposentadoria já é relevante. Muitas pessoas acreditam que poderão contar com o INSS ou até continuar trabalhando, mas a verdade é que não dá para prever o futuro. Tanto para garantir que a previdência social dê conta da renda familiar, quanto para se manter ativa no mercado de trabalho, observa Ana Paula Netto, consultora financeira da Onze, fintech de saúde financeira e previdência privada.
A consultora explica que, na aposentadoria, alguns custos – como seguro saúde e remédios – viram grandes vilões e na maioria dos casos se tornam inviáveis considerando a aposentadoria de uma mulher média brasileira.
“Ou seja, ela precisa depender de terceiros, que podem ter ou não disponibilidade financeira para ajudá-la; na pior das hipóteses, pode entrar numa situação de endividamento, o que traz consequências ainda mais delicadas emocionalmente na terceira idade. Daí a importância de se preparar e, quanto mais cedo começar, menos difícil fica”, aconselha Ana Paula.
Ela lembra que, historicamente, a relação com dinheiro era ligada exclusivamente aos homens, que eram os únicos provedores e gestores do dinheiro da família.
“Estou falando de um passado recente, no qual as mulheres não podiam frequentar cursos superiores, trabalhar ou abrir conta em banco sem a autorização do marido (conforme previa o Código Civil de 1916, que foi alterado em 2002). Muito já foi conquistado em relação à independência financeira da mulher, mas ainda temos um longo caminho a percorrer quando pensamos em equidade real, principalmente nas áreas mais remotas do nosso país”.
Questões sociais x questões econômicas
Para Ana Paula, estamos num processo de correção desse sistema e, para que a mulher possa investir, o primeiro ponto é ter dinheiro “sobrando”.
Fatos como a diferença salarial entre homens e mulheres e até a pouca representatividade feminina em cargos com melhor remuneração resultam num menor percentual de mulheres investidoras.
“Outro ponto importante é o comportamento das mulheres em relação ao risco, já que, no geral, possuem maior aversão a ele, preferindo deixar o dinheiro em poupança ou na própria conta corrente”.
E tudo isso tem um impacto direto e negativo, diz: estresse constante; ansiedade; depressão; insônia; brigas e afastamento social; falta de perspectiva; baixa produtividade no trabalho; incapacidade de realizar planos; endividamento e cobranças constantes.
Arregaçando as mangas
Renata Alarcon é colunista da SpaceMoney. Publicitária, produtora de conteúdo feminino, empreendedora digital e CEO da Reaw, ela defende que a educação e o planejamento financeiro são os primeiros passos para uma independência financeira.
“E isso tem uma importância ainda mais grandiosa quando falamos de mulheres, principalmente, se olharmos para o cenário de hoje, no qual mais de 45% dos lares brasileiros são sustentados por elas”, afirma.
Para Renata, já que não aprendemos educação financeira desde a infância, agora, com tantas oportunidades de aprendizado, até na internet, é hora de arregaçar as mangas, aprender o máximo possível e continuar assumindo as responsabilidades que são colocadas, mas com muito mais entendimento e tranqüilidade.
“Nada muito complexo para começar. Uma planilha ou um caderno com as despesas de cada mês detalhadas (comece fazendo dos 3 últimos meses), já é suficiente para entender o que pode ser melhorado, cortado ou controlado”, orienta.
Falando de empreendedorismo, Renata avalia que em muitos casos as mulheres começam por necessidade, como uma maneira de conquistar uma renda complementar para o sustento do lar, porém, pode ser perigoso se feito sem o mínimo de planejamento, já que qualquer negócio precisará de investimento, alerta a empreendedora.
“Se os custos/valor do serviço não forem calculados corretamente, o prejuízo pode ser grande e acabar prejudicando suas finanças ao invés de ajudar. Existem alguns aplicativos disponíveis de forma gratuita que ajudam a precificar seus produtos e serviços e, assim, seu risco pode ser mínimo”, orienta.
Liberdade para ser
Para Renata, o dinheiro não pode ser um problema. Ele é e precisa ser visto como facilitador para a realização de sonhos.
“E não estou falando apenas com quem recebe uma grande renda mensal. Basta organizar suas finanças com cuidado, priorizar o que realmente é importante para a sua vida e tirar o primeiro sonho do papel, colocando metas reais. Comece planejando um sonho de pequeno, de médio e um a longo prazo”.
Quando o de pequeno prazo for realizado, diz Renata, a paixão pela organização financeira vai começar a fazer sentido e a vontade de conquistar a independência financeira aumentará a cada dia.
Adélia Glycerio é advogada, educadora financeira e autora do livro “Independência Financeira: 7 Princípios para Você Alcançar Seus Sonhos”. Segundo ela, a educação financeira é importante para todas as pessoas e, para as mulheres, mais ainda. Isso porque irá trazer liberdade para que elas sejam “o que nasceram para ser”.
“Vai possibilitar ficar numa relação conjugal quando existe amor, respeito, aceitação, acolhimento, e não por questões financeiras, por exemplo”.