
Em um cenário econômico marcado por crises cíclicas e escândalos corporativos, o tema da governança corporativa ganhou destaque tanto entre executivos quanto entre investidores. Não é para menos: casos como os da Enron nos Estados Unidos, da Petrobras no Brasil ou mais recentemente da Wirecard na Alemanha demonstram como falhas nos processos internos de controle e transparência podem levar empresas gigantes à derrocada, destruindo bilhões em valor de mercado e prejudicando milhares de investidores.
Para quem investe ou pretende investir em ações, entender os mecanismos de governança corporativa tornou-se tão importante quanto analisar indicadores financeiros tradicionais. Uma empresa pode apresentar números impressionantes em seus balanços, mas sem uma estrutura robusta de governança, está potencialmente exposta a riscos que não aparecem nas demonstrações financeiras. É nesse contexto que a governança deixou de ser um diferencial para se tornar um pilar fundamental na análise de investimentos.
O que é governança corporativa?
Em resumo, governança corporativa pode ser definida como o conjunto de práticas, processos e políticas que regem o relacionamento entre a administração de uma empresa e seus stakeholders — acionistas, funcionários, clientes, fornecedores, comunidade e demais partes interessadas.
Em termos práticos, trata-se do sistema pelo qual as empresas são dirigidas, monitoradas e incentivadas. Ela envolve os relacionamentos entre proprietários, conselho de administração, diretoria executiva e órgãos de fiscalização e controle.
O conceito começou a ganhar maior relevância a partir dos anos 1980 e 1990, quando o mercado de capitais se expandiu globalmente e a pulverização do capital das grandes corporações criou o chamado “conflito de agência” — a potencial divergência de interesses entre proprietários (acionistas) e gestores. A ausência de mecanismos eficientes de governança nessa época resultou em diversos escândalos corporativos. Casos da WorldCom e Enron no início dos anos 2000, levaram à criação da Lei Sarbanes-Oxley nos EUA, que estabeleceu regras mais rígidas para a governança das empresas listadas.
No Brasil, a discussão sobre governança corporativa ganhou força a partir do final dos anos 1990, com o processo de privatização de empresas estatais e a abertura econômica. A criação do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) em 1995 e o lançamento dos segmentos especiais de listagem da B3 (antiga BM&FBovespa) em 2000 foram marcos importantes nesse processo. Hoje, a governança é reconhecida como fator fundamental para atrair investimentos, reduzir o custo de capital e garantir a sustentabilidade dos negócios no longo prazo.
Os pilares da governança corporativa
A governança corporativa se fundamenta em quatro princípios básicos, que orientam as práticas e políticas das empresas comprometidas com uma gestão responsável e transparente:
Transparência
Mais do que simplesmente divulgar informações obrigatórias, a transparência implica no desejo genuíno de disponibilizar para as partes interessadas dados relevantes. Inclusive aqueles que não são exigidos por lei, mas que podem influenciar decisões de investimento. Uma comunicação clara, aberta e tempestiva cria um ambiente de confiança, tanto internamente quanto na relação com terceiros.
Equidade
O princípio da equidade representa o tratamento justo e igualitário de todos os acionistas e demais stakeholders. Isso significa que acionistas minoritários devem ter seus direitos respeitados e protegidos, com mecanismos que evitem o abuso de poder por parte dos controladores. Na prática, traduz-se em políticas como tag along (direito de venda conjunta de ações em caso de transferência de controle) e representatividade de minoritários nos conselhos.
Prestação de contas (accountability)
A accountability refere-se à obrigação dos agentes de governança (sócios, administradores, conselheiros fiscais e auditores) de prestar contas de sua atuação, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões. Isso inclui a divulgação precisa e tempestiva de demonstrações financeiras, relatórios gerenciais e demais documentos relevantes para avaliação da gestão.
Responsabilidade corporativa
Este pilar diz respeito ao dever dos administradores de zelar pela sustentabilidade e longevidade da organização. Incorporando considerações de ordem social e ambiental na definição dos negócios e operações. Na prática, significa que as decisões devem levar em conta os impactos de longo prazo sobre a sociedade e o meio ambiente, além dos resultados financeiros de curto prazo.
Níveis de governança no Brasil
No mercado de capitais brasileiro, a B3 criou segmentos especiais de listagem para diferenciar as empresas conforme o grau de comprometimento com práticas de governança corporativa. Essa diferenciação ajuda os investidores a identificarem companhias com padrões superiores de transparência e equidade.
Novo Mercado
É o nível mais elevado de governança, com regras rígidas que vão além das obrigações previstas na legislação. As empresas listadas neste segmento devem emitir apenas ações ordinárias (com direito a voto), conceder 100% de tag along para todos os acionistas, manter um free float (ações em circulação no mercado, excluindo as ações detidas por controladores e gestores) mínimo de 25%, divulgar informações financeiras trimestrais em padrões internacionais, entre outras exigências.
Nível 2
Bastante similar ao Novo Mercado, porém permite a existência de ações preferenciais (sem direito a voto). No entanto, essas ações preferenciais devem ter direito a voto em situações críticas, como aprovação de fusões e incorporações, e os detentores devem receber tag along de no mínimo 100% do valor pago aos controladores.
Nível 1
Foca principalmente na transparência das informações. As empresas neste nível devem divulgar informações adicionais às exigidas por lei, manter um free float mínimo de 25% e promover melhorias na divulgação de informações trimestrais. Não há exigências quanto à estrutura do conselho de administração ou à política de tag along.
Bovespa Mais
Criado para empresas de menor porte que desejam acessar o mercado de capitais de forma gradual. Possui regras mais flexíveis, mas com uma trajetória para adoção de práticas de governança mais robustas ao longo do tempo.
Ao analisar uma empresa para investimento, é importante verificar não apenas em qual segmento ela está listada, mas também como ela efetivamente cumpre as exigências desse segmento. Relatórios de referência como o Formulário de Referência (exigido pela CVM) e o Relatório de Sustentabilidade são fontes valiosas para essa avaliação.
Como a governança impacta o desempenho das empresas
Desde sua criação, o mercado tem consistentemente demonstrado que empresas com boas práticas de governança corporativa apresentam desempenho financeiro superior no longo prazo.
Empresas listadas no Novo Mercado apresentam menor volatilidade e maior liquidez quando comparadas a empresas de outros segmentos. Além disso, essas empresas conseguem obter financiamentos a custos mais baixos, pois são vistas como investimentos de menor risco.
A qualidade da governança também se reflete na tomada de decisões corporativas. Conselhos de administração independentes e qualificados, com experiências diversas e apoiados por comitês especializados, tendem a tomar decisões mais embasadas e menos enviesadas. Isso permite um acompanhamento mais detalhado e eficiente dos aspectos críticos do negócio.
Por fim, as estruturas robustas de governança proporcionam uma gestão de riscos mais eficiente, com sistemas de controles internos que identificam ameaças potenciais antes que se tornem problemas reais.
Tendências em governança corporativa
A governança corporativa é um conceito dinâmico, que evolui conforme as mudanças no ambiente de negócios e nas expectativas da sociedade. Algumas tendências atuais incluem:
- Agenda ESG: cada vez mais, questões ambientais, sociais e de governança são vistas de forma integrada. Empresas líderes estão incorporando critérios ESG em suas estratégias e processos decisórios, reconhecendo que riscos ambientais e sociais podem ter impactos financeiros significativos.
- Diversidade nos conselhos e na alta administração: a diversidade de gênero, etnia, formação e experiência nos órgãos de governança tem se mostrado não apenas uma questão de responsabilidade social, mas também um fator que contribui para melhores decisões e resultados.
- Tecnologia e cibersegurança: a transformação digital das empresas traz novos desafios para a governança, como a necessidade de supervisão de riscos cibernéticos e a incorporação de conhecimentos tecnológicos nos conselhos. Temas como privacidade de dados, inteligência artificial e automação passaram a fazer parte da agenda de governança das organizações.
Governança como diferencial competitivo
No geral, a governança corporativa evoluiu de um simples conjunto de regras para se tornar um pilar fundamental na gestão moderna. Seu impacto vai além do compliance, representando um verdadeiro diferencial competitivo que determina a sobrevivência e o sucesso das empresas no longo prazo.
Os investidores, sejam experientes ou iniciantes, precisam desenvolver a capacidade de avaliar a qualidade da governança das empresas em que investem. Uma governança sólida não apenas protege o patrimônio, mas também potencializa os resultados e a criação de valor sustentável.
Por fim, em um mercado cada vez mais dinâmico e desafiador, as empresas que priorizam boas práticas de governança demonstram maior resiliência e adaptabilidade. Como a experiência do mercado nos ensina: uma governança bem estruturada é o alicerce para resultados consistentes e duradouros.