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Combustíveis caros, jornadas exaustivas e desrespeito: o dia a dia de motoristas de aplicativo

Motoristas relatam dificuldades de suporte das próprias plataformas, preocupações com a segurança nas viagens e com a baixa remuneração, apesar dos reajustes anunciados por Uber e 99

- Paul Hanaoka/Unsplash
- Paul Hanaoka/Unsplash

A disparada dos preços dos combustíveis tem dificultado a rotina de trabalho de motoristas de aplicativos como Uber e 99. Entretanto, esse não foi o único obstáculo citado por Ricardo Gonçalves, 58, motorista cadastrado nos dois serviços. “Eles [as plataformas] nos remuneram muito mal hoje. Dia desses mesmo eu dirigi umas doze horas por dia, cara. Cansadão, mas dei o gás máximo para conseguir o dinheiro do dia”.

Morador de Belford Roxo (RJ), Ricardo utiliza o próprio veículo para realizar as corridas e só não pensa em desistir da função porque não vê onde pode se inserir no mercado de trabalho formal.

“Eu fui motorista de ônibus por quase 30 anos. Foi o que eu fiz a vida inteira. Do nada, há dois anos, ainda antes de toda essa coisa de pandemia, eu fui demitido. Eu e mais alguns colegas. A Justiça já determinou que eu seja reintegrado à empresa há meses, mas até agora nada”, conta. 

Ricardo não está sozinho. As reclamações de motoristas se multiplicaram ao longo dos meses. Em setembro, as empresas de transporte por aplicativo anunciaram medidas para tentar acalmar os ânimos.

Plataformas anunciam melhorias, mas apresentam problemas semelhantes

Em reajuste prometido à categoria somente na região metropolitana de São Paulo, a Uber elevou em até 35% a remuneração dos motoristas cadastrados no aplicativo. O percentual depende da categoria em que o veículo foi inserido na plataforma (UberX, Comfort, VIP ou Black) e varia conforme a região, ou seja, bairros nobres ou com maior demanda por corridas pagam mais.

Na 99, o ganho dos motoristas passou da taxa fixa de 10% para 25%, subsidiado pela empresa, ou seja, sem repasse ao consumidor. A revisão, segundo a plataforma, leva em consideração a manutenção do equilíbrio do serviço prestado, “de maneira que a população também continue com acesso a um meio de transporte financeiramente viável, seguro e eficiente”. 

Ricardo diz que as plataformas hoje não apresentam muitas vantagens uma sobre a outra, mas afirma ter passado maiores dificuldades com a 99. “O serviço de GPS deles tem melhorado muito, mas até algum tempo era bem confuso. O passageiro selecionava um destino e pela rota se deparava com outro. O 99 confunde ainda, às vezes, nomes de bares, igrejas, lojas… Precisa melhorar mais.”

Mais até que o cansaço e a perda de tempo por dirigir para um destino errado, há o medo de cair em localidades em que grupos de milícias restringem o direito de ir e vir. 

“Nunca aconteceu comigo e espero que nunca aconteça, mas aqui na Baixada [Fluminense] e na Zona Oeste [da cidade do Rio de Janeiro], nós sabemos, tem áreas em que não se pode entrar se não for morador, se não for em determinado horário, se estiver em dia de operação… Eu já neguei viagens em que o passageiro queria ir para um lugar muito perigoso mesmo à luz do dia”, diz.

Perguntado se toma alguma medida para economizar combustível durante as corridas, Ricardo diz que não faz muita coisa “a não ser desligar o carro se o trânsito não anda de jeito nenhum”. Já Fábio Freire, 45, motorista vinculado ao Uber e morador de São Gonçalo (RJ), diz que antes parava em algum lugar até que uma nova corrida fosse solicitada, mas isso tem sido “impossível” porque a plataforma parece contar com menos usuários hoje.

“A gente mal termina uma corrida e aparece outra. Se você cancela, vem a mesma solicitação. Acontece muito. Parece algo que ocorre no [estado do] Rio de Janeiro todo e todo mundo reclama da dificuldade que tem para chamar um motorista”, diz.

Pandemia compromete o bem-estar dos motoristas

Fábio afirma que, além das condições de trabalho que precisam ser melhoradas pelas plataformas, precisa também contar com a sensibilidade e o respeito dos passageiros – o que nem sempre acontece. 

“Nós estamos aí com a pandemia já faz mais de um ano. Você acha que eu deveria relembrar o cara ou a mulher de que ele precisa usar a máscara no carro? Aí o sujeito que não se protege, geralmente, vai lá reclamar no aplicativo depois que eu não liguei o ar-condicionado. A gente não pode ligar por recomendação”, diz.

Fábio afirma que o fato de não ligar o ar-condicionado do veículo até compensa com a disparada dos combustíveis, mas preferia que não tivesse sido assim. “Eu dirijo com a máscara o dia inteiro. Faço viagens que vão daqui de Nova Iguaçu até o leste fluminense [cerca de 78 km de distância], às vezes vou até a região da Costa Verde [cerca de 100 km de distância da cidade onde vive, São Gonçalo]. Eu gostaria que a situação estivesse melhor, mas não posso me arriscar também. Eu tenho a minha família”, conta.

A pandemia de Covid-19 havia afastado Edilson Silva, 68, morador de Nilópolis (RJ), por meses do dia a dia como motorista de aplicativo. Empregado por anos no Distrito Industrial de Queimados, Edilson foi demitido em 2017 e desde então transporta passageiros do Uber e da 99, até que toda a sua família contraiu o coronavírus em abril de 2020. 

“Minha esposa e minha filha ficaram muito mal e eu também. Nós não temos nenhuma comorbidade tão grave, mas eu faço uso de medicamentos controlados para a pressão. Não me internei, mas fiquei com medo de voltar a dirigir depois. Levei uns três meses para voltar”, afirma.

Preços nas alturas

Do retorno no ano passado até ao momento atual, Edilson afirma que a alta dos preços dos combustíveis tem sido o maior desafio para continuar. 

“Eu não me aposentei. Voltei a contribuir por conta própria faz pouco tempo para ver se completo, mas agora eu dei uma parada porque preciso do gás [natural veicular] (GNV) e quase todo mês vou ao mecânico por um problema do motor que não para de aparecer”, conta. 

Segundo o Monitor dos Preços do OSP (Observatório Social da Petrobras), o GNV bateu o recorde histórico neste mês de novembro, vendido a R$ 4,25 o metro cúbico – 39,0% acima da média histórica de R$ 3,06. 

Apesar do cenário nem um pouco animador, Edilson pretende continuar com as corridas. No dia em que nos encontramos, já à noite, o motorista havia lucrado apenas R$ 46 depois de nove horas de trabalho. “Eu me canso, depois de uma certa idade a gente cansa mesmo, estamos numa má fase também… Mas gosto de dirigir por aqui e principalmente para longe. Me sinto bem, mais ativo”, complementa.

Ações em xeque

Em outubro, o Uber anunciou medidas como o Grana Extra, que oferece um valor adicional para todos os motoristas que completarem um número mínimo de viagens a cada semana. Nesse período, eles devem manter os mesmos níveis de aceitação entre os usuários. Houve também o lançamento da campanha Indique-e-Ganhe, em que motoristas que já dirigem com a plataforma ganham um valor pela indicação de novos parceiros. 

Ricardo e Edilson disseram desconhecer as promoções, mas Fábio afirma ter cumprido os requisitos do Grana Extra e não recebeu o devido valor prometido. “Fiz o número de 120 viagens numa semana de qualquer tipo e não recebi ainda. Contatei o suporte pelo próprio aplicativo, mas não vi nada ainda. Meio que deixei de lado, sabe?”, conta.