A ausência de uma moderna e responsável reforma administrativa perpetua privilégios e sacrifica, de forma desigual, a sociedade brasileira.
Causou estranheza e, em alguns, justa indignação, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de garantir a irredutibilidade dos salários dos funcionários públicos, de todos os níveis e de todos os entes federativos. Tal medida vem num momento em que a maior parte dos empregados do setor privado sofre com expressivas reduções de jornada e de salários, sem contar o grande número de suspensões de contratos de trabalho e as demissões irreversíveis. Pior ainda se considerarmos que grande parte dos funcionários públicos se encontra em casa ou em jornada reduzida, com seus empregos e vencimentos constitucionalmente protegidos.
Porém, há alguns aspectos a considerar antes de entrar na discussão da legalidade ou moralidade desse tipo de decisão. Primeiro, a ação ora julgada não tem relação direta com o atual momento pandêmico e econômico. A ação tramita desde o ano 2000, quando corporações do funcionalismo público recorreram ao STF alegando inconstitucionalidades em pontos da Lei Complementar 101 de 04 de maio de 2000, a celebrada (hipocritamente, por alguns) e bem vinda Lei de Responsabilidade Fiscal. Houve contestação de constitucionalidade às disposições dos artigos 9 e 23 da citada Lei.
Os artigos mencionados elencavam as hipóteses de redução de salário e jornada, além do cancelamento de repasses de recursos pelo Poder Executivo aos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Público quando fossem atingidos os tetos, estabelecidos na Lei, para despesas de gastos com pessoal. Interessante notar que a própria Constituição Federal de 1988, no artigo 169, prevê a possibilidade de demissão de funcionários públicos concursados estáveis em razão de desequilíbrio orçamentário. Coisas do Brasil: é legal demitir, mas é ilegal reduzir salário e jornada. Como, na prática, não ocorre nem uma nem outra, fica tudo como está e ficam todos felizes, exceto quem paga a conta: os contribuintes.
Independentemente da relação da decisão do STF com o atual cenário, é preciso ressaltar que a classe dos funcionários públicos desfruta de inúmeros e inaceitáveis privilégios, com os quais sequer sonha a maioria dos trabalhadores brasileiros: estabilidade de emprego, aposentadoria integral ou complementada, anuênios, quinquênios, gratificações, licenças-prêmios, promoções automáticas, ausência de avaliação periódica e planos de cargos e salários que garantem a alguns deles ─ não poucos ─ chegarem ao topo da carreira com apenas cinco ou seis anos no quadro de servidores. No topo, sem perspectiva de promoção ou ameaça de demissão, para que fazer um bom trabalho?
As corporações retrucam que a maioria dos funcionários públicos é mal remunerada e que tais privilégios se aplicam a poucos. Duas inverdades. Qualquer funcionário público, exceto os mais qualificados e graduados ─ é estranho, mas é verdade ─ ganha muito mais, em salários e benefícios, que um seu congênere da iniciativa privada. Nem é preciso usar o surrado exemplo do salário do ascensorista da Câmara Federal em relação ao detentor da mesma função no Edifício Copan. Casos como esses se multiplicam aos milhares, ou milhões, em todos os municípios, estados e na União, assim como nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público.
Uma parada para explicar a estranheza do parágrafo anterior. Os funcionários públicos de carreira, que chegam, por anos de dedicação, estudo e probidade, ao alto escalão técnico ganham menos que médios e altos executivos das empresas privadas, muitas vezes com maiores responsabilidades. As ilhas de excelência, ainda existentes no serviço público, sofrem com o assédio das grandes empresas privadas a esses profissionais e perdem qualidade quando alguns de seus quadros, cansados da “burrocracia” e do marasmo de seus órgãos de origem, rendem-se ao canto da sereia de melhores salários e perspectivas de crescimento.
Há razões históricas e políticas, sobejamente conhecidas e discutidas, para esse elenco infindável de privilégios do servidor público. Concentro-me naquela que considero fundamental e principal causa, como um moto-contínuo, da criação e perpetuação desse estado de coisas da Administração Pública: a relação promíscua entre a classe política e as corporações do funcionalismo. Os fazedores, os executores e os julgadores das leis, sejam eles concursados, nomeados ou eleitos, são funcionários públicos. Não haveria, em minha opinião, necessidade de nenhuma outra razão para justificar a citação do juiz Marlos Melek do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-9) em entrevista ao site da BBC Brasil: “privilégio do servidor público é um dos maiores problemas do país”.
Reconheço, contraditando Nelson Rodrigues, que nem toda unanimidade é burra, mas a generalização é. Portanto, antecipo-me a contestações, admitindo que haja exceções. Todavia, creio que são raras. Existe um caminho para a solução desse problema? Sim. Um longo, difícil e árduo caminho, que já vem sendo trilhado desde a redemocratização. Vários desses privilégios aqui citados já não são estendidos a novos funcionários públicos de algumas carreiras, mas muitos deles permanecem, mesmo para os novos funcionários.
O maior obstáculo para um responsável e acertado enfrentamento desse problema é que, como quase tudo no Brasil, o ritmo das mudanças é lento e descontínuo. Já tivemos reformas administrativas, mas exceto Collor e FHC, que queriam mesmo reduzir a máquina pública, os demais presidentes entenderam reforma administrativa como mera extinção de ministérios. Sem contar que as gestões do Partido dos Trabalhadores especializaram-se em inchar o quadro de funcionários da União para níveis a beira do insuportável pela sociedade.
O atual presidente, além de repetir a canhestra lógica de achar que a extinção de ministérios extingue cargos e gera economia ─ na verdade, extingue apenas um, o do ministro ─, já declarou que a reforma administrativa será suave, um eufemismo para indicar que os principais privilégios serão mantidos. Não por acaso, decorridos dezoito meses de governo do PSL (ou será Patriotas?), ainda não foi enviada ao Congresso o texto da prometida Reforma Administrativa. Tampouco, o Governo, nem mesmo diante do quadro atual, sinalizou medidas de redução de gastos com pessoal, limitando-se à extinção de cargos não ocupados e à suspensão de novos concursos. Entretanto, não basta não aumentar a máquina pública. É preciso reduzi-la onde possível e torná-la mais eficiente para que, finalmente, sirva ao seu verdadeiro e único patrão: o povo brasileiro.