A unanimidade não é burra. O que não existe não pode ser burro, inteligente ou qualquer outra coisa. Já ouvi gente dizer que o “Juízo Final” da Capela Sistina, obra de Michelângelo, não tem nada de extraordinário. Trata-se apenas de uma reprodução e colagem de cenas e personagens da mitologia grega, devidamente romanizados e cristianizados. Outro me disse que a alegada perfeição de Pelé não passa de um mito. Afinal, o Rei (será mesmo?) não sabia bater escanteios e nunca fez um gol de letra. O que existe, e sempre existiu nas diversas épocas, é a quase unanimidade: os dois gênios já citados, Da Vinci, Einstein, Senna, Vera Fischer nos anos 70 e a aversão ao coentro.
A sociedade brasileira, desde os anos 90, também, criou sua quase unanimidade: o clamor por reformas estruturais, que criem as condições para um desenvolvimento sustentável. Se ainda não chegamos ao paraíso do desenvolvimento é porque não existe, e nunca haverá, consenso sobre o formato ideal de cada uma das várias reformas necessárias. Sequer conseguimos estabelecer as prioridades, tampouco realizar uma reforma que seja de forma abrangente e com previsão de longa vida. Cada um dos presidentes, desde então, enviou projetos de reformas ao Congresso e conseguiu, após árduas negociações, aprová-las em parte. Só na Previdência tivemos quatro reformas, iniciando-se com FHC, seguido por Lula e Dilma e, mais recentemente, por Bolsonaro.
O atual governo, pressionado por uma herança de dois anos de profunda recessão e fortemente apoiado pela entidade “Mercado”, optou por uma radicalização liberal. Organizou-se em torno de um severo programa de ajuste fiscal, redução do Estado e desburocratização da atividade empresarial. A criação do Ministério da Economia e a nomeação de seu titular, um competente e notório liberal, discípulo de Friedman, expoente da escola de Chicago, deu o tom do rumo que a economia brasileira deveria trilhar nos próximos anos.
Aqui peço vênia para fazer um parêntese e, em seguida e apoiado nele, entrar no tema central da coluna. Nesse final de semana encontramos nas bancas, em diferentes publicações, duas entrevistas que, em conjunto, confirmam o “quase” citado no primeiro parágrafo. Na Veja, o ministro Paulo Guedes repetiu o discurso da urgente necessidade da aprovação das reformas e da legislação complementar, especialmente aquelas que ajudam na redução do déficit fiscal. Pediu uma ação conjunta dos dois Poderes para esse objetivo, mas não disse quando o governo vai mandar seus projetos das reformas administrativa e tributária. Insiste, ainda, que sem este equilíbrio fiscal não haverá desenvolvimento, ou seja, justificou o pibinho.
De forma mais acadêmica e inovadora, pelo menos para o atual cenário monopolizado pelo Mercado e pelo Liberalismo, o economista André Lara Rezende, nas páginas do caderno “Ilustríssima” da Folha de São Paulo, vai contra a corrente. Defende que sem investimento público não haverá desenvolvimento e que, para chegar a tal objetivo, o Estado precisa tomar a dianteira e não ficar aguardando a reação do setor privado às reformas, que não se sabe quando e como serão efetivadas. O excessivo foco no ajuste fiscal torna-se um entrave ao desenvolvimento, ao contrário da versão dominante, que lhe vê como um imperativo. O entrevistado comete, ainda, a suprema das heresias: o governo pode e deve imprimir dinheiro para custear esses investimentos. Para entender os impactos, ou não impacto, dessa medida na taxa de inflação, melhor será ler o artigo original (FSP, 15 de março de 2019)
Sem o brilhantismo e o conhecimento de Lara Rezende, justifico a seguir meu apreço e concordância com sua tese. Apesar de desejável, o equilíbrio fiscal nem sempre é possível. Talvez, tal como a unanimidade, ele não exista na prática. As distorções apresentam-se, ou são causadas por diversos fatores. Externos e internos, momentâneos ou permanentes, justificados ou injustificados, vários desses fatores não podem ser previstos quando da formulação do programa de governo. Ainda mais se a execução desse programa tentar excluir o fator político, o único canal legítimo e capaz de conduzir as difíceis negociações na busca do consenso mínimo.
Se austeridade fiscal fosse fator determinante para o crescimento econômico, a Alemanha seria o país de maior crescimento econômico no mundo desde a criação do Euro (ano 2000). A Alemanha cresceu, é verdade, neste período, mas muito mais a custa da penúria (e incompetência) de seus pares na Comunidade Européia. Sai governo, entra governo, a Espanha continua com mais de 14% de desempregados; a Itália mostra agora, infelizmente, seu despreparo para grandes emergências; Grécia e Portugal saíram da UTI já há alguns anos, mas nunca exibiram índices de crescimento satisfatórios. Chego a suspeitar que Itália, Espanha e, em menor medida, a França, se excluído o setor de Turismo, seriam economias do tamanho e do feitio da nossa vizinha e querida Argentina.
O Brexit foi, entre outros motivos, a reação dos britânicos a uma política econômica europeia ditada pela Alemanha. Ciente disso, Boris Johnson já tinha anunciado aumento de gastos públicos antes mesmo da atual emergência. Da mesma forma, não se vê falar em austeridade fiscal na China e nos EUA e não me venham dizer que há equilíbrio fiscal sob Trump. Coincidentemente, são as duas únicas grandes economias que crescem continuamente.
Interessante é que o mercado financeiro aplaude entusiasticamente anúncios de estímulos monetários (da ordem de USD 1,5 trilhão nos EUA) e torce o nariz para estímulos fiscais. Será porque esses agentes serão os vasos comunicantes que levarão esse colossal volume de dinheiro para a sociedade? Dinheiro que, antes de chegar às pessoas e empresas, terá uma boa parte consumida em comissões, pagamento a rentistas e, pior, bônus para os CEO`s e CFO`s de grandes bancos e corretoras.
O Brasil precisa começar a discutir, seriamente, outras alternativas para o desenvolvimento econômico. É cedo ainda para dizer qual delas é a melhor ou mais eficaz, mas pensar fora da caixinha, como dizem os palestrantes todo o tempo, ajuda encontrar soluções inovadoras e eficientes.