“Precisamos discutir o futuro do país sem as amarras do fundamentalismo e de radicalismos. Talvez não tenhamos outra oportunidade como essa.”
A última manchete positiva que os brasileiros leram nos jornais foi estampada em um jornal de Salvador, no dia 8 de julho de 2014. Dizia a tal manchete: “Alemanha sofre de síndrome da semifinal; Brasil é favorito”. O resultado todos nós sabemos. De lá pra cá, e já se vão seis anos, tivemos uma histórica recessão, perdemos mais uma Copa, derrubamos uma presidente e prendemos outro. No meio de tudo isso, duas eleições presidenciais cindiram o país, cisão que perdura até os dias de hoje, sem qualquer sinal de arrefecimento, trazendo desastrosos reflexos em praticamente todos os aspectos da vida nacional, sejam eles o político, o econômico, o social, o moral, o artístico e, até mesmo, o científico.
Não há assunto, por menor e menos relevante que seja, que não se transforme num Fla x Flu, no qual, em geral pelas redes sociais, digladiam-se as facções. O processo “nós contra eles” começou na campanha presidencial de 2014, que dividiu o país em coxinhas e mortadelas. Na eleição de 2014 a mortadela ganhou, mas essa iguaria teve curto prazo de validade. A coxinha, mais vistosa e mais bem relacionada, mexeu os pauzinhos e conseguiu que a vigilância sanitária interditasse o produto concorrente, que era popular, mas estava custando muito caro. Retirada das gôndolas, a mortadela recolheu-se e ninguém foi às ruas pedir sua volta. Tentou voltar em 2018, mas aí já havia outras opções além da inimiga coxinha.
Esta, vitoriosa no tapetão, descuidou-se. Deixou que lhe fossem acrescentados novos ingredientes, entre eles, o rancor, a intolerância e um sádico saudosismo do que de pior pode haver. Assim, dividiu-se entre os que aceitaram de bom grado o novo gosto e o novos donos da marca e aqueles que ainda mantinham o apreço pelo sabor original, mas que não viam problemas em consumir, em porções moderadas, até mesmo a antiga inimiga.
Em 2020, todos esses petiscos e neologismos caíram em desuso. O jogo ficou mais pesado. Não há mais a turma do deixa disso. Um lado canta: “de repente é aquela corrente prá frente”. O outro responde: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.
Enquanto isso, o presente e o futuro não deixam de trazer más notícias e expectativas. A crise que um dia foi só nossa, agora é global. Nem que conseguíssemos fazer as coisas certas, o que parece inimaginável hoje, ainda assim teríamos problemas pela frente. Fazer a coisa certa é, atualmente, o que menos importa para os radicais de parte a parte. Perdida em discussões menores e comezinhas, a sociedade brasileira, com as exceções que comentaremos adiante, parece anestesiada, impotente e incompetente para buscar saídas e soluções, que ajudem a mitigar os efeitos da tempestade perfeita, formada pelas crises política, econômica, sanitária e moral. O ano, que começou com bons presságios, já é dado como perdido. O que está em discussão é a profundidade do poço, ainda desconhecida, e quem sobreviverá ou sucumbirá à queda vertiginosa.
Antes que soluções, o hábito brasileiro é, de imediato, buscar os culpados — geralmente, os outros. Há culpados para todos os gostos e matizes. Porém, pouco se fala do estado em que já se encontrava o setor de Saúde no Brasil antes mesmo da chegada do primeiro batalhão do Coronavírus SARS – CoV2. Menos ainda se fala da clamorosa falta de gestão em todos os níveis da administração da saúde pública. Esquece-se do estado de mendicância em que estavam, e estão, a maioria dos estados e municípios, incapazes de atender as demandas normais de suas populações, que dirá as demandas decorrentes da atual pandemia.
Falando apenas de Brasil, as exceções ao estado de letargia e insensibilidade de uma parte menor da sociedade e de grande parte dos gestores públicos estão na academia e no setor operacional do serviço público. Pesquisadores e especialistas das universidades e institutos de pesquisa têm trabalhado sem trégua no estudo e desenvolvimento de tratamentos, remédios e vacinas. Médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras e profissionais de outras áreas da saúde física e mental desdobram-se dia e noite, lutando contra a falta de elementares recursos, para salvar vidas e fazer retornar para suas casas milhares de pessoas infectadas. Em adição, empresas públicas e privadas e pessoas promovem variadas e frequentes ações de solidariedade, que buscam suprir as carências do segmento mais vulnerável da população. Igualmente, há produtivas e sensatas discussões nas ciências sociais, Economia incluída, quanto aos efeitos presentes da pandemia e os cenários que poderão advir ao término de sua fase mais aguda, o que deverá ocorrer quando da aprovação e liberação de uma vacina eficaz, ainda sem perspectiva temporal.
Na economia temos notado a predominância de duas importantes questões. Primeiro, o futuro da economia global, em seu formato e tamanho, decorrente das mudanças de perfil e comportamento das pessoas e das empresas face à nova conjuntura. Bastante importante, sem dúvida, mas não tanto quanto a segunda, mais urgente e inescapável, pelo menos para nós brasileiros: o financiamento do déficit público que, certamente, será bem maior daqui para frente em razão das necessárias medidas de emergência adotadas pelo Governo, as quais, como já escrevemos anteriormente, ainda não estão esgotadas.
Sem espaço para a criação de novos impostos e pautado pela dominância fiscal ─ necessidade de controle da dívida e do Orçamento em níveis aceitáveis pelo mercado interno e externo ─, abriram-se as discussões sobre as alternativas de política monetária, sendo a mais atual a questão de emissão de moeda pelo Banco Central para financiar o Tesouro e permitir um passo além do mero socorro ás empresas e pessoas. Essa emissão serviria, também, para bancar novos investimentos produtivos, bem selecionados e gerenciados, que possam alavancar um desejável crescimento sem que fiquemos a mercê dos investimentos externos e da excessiva e, às vezes oportunista, cautela do empresariado nacional. Haverá impactos na inflação? Por enquanto, a resposta não é conclusiva, mas o fato é que essa resposta não pode ser dada, apenas, a luz dos postulados prevalentes ao final de 2019. O mundo mudou.