No dia 11 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar 146/19, o Marco Legal das Startups, após a matéria retornar do Senado com modificações. O placar foi de 360 votos a favor e 66 contrários.
A lei foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na terça-feira, 1º de junho.
Hoje, no Brasil, existem 13.785 startups, de acordo com dados da StartupBase, base de dados oficial do ecossistema brasileiro de startups da Abstartups (Associação Brasileira de Startups). Com a regulamentação, mudanças são esperadas tanto na desburocratização de processos quanto no ambiente de segurança jurídica para atuação dessas empresas no país.
Nesta Spacedica, detalhamos as principais mudanças propostas e consultamos especialistas sobre a viabilidade do Marco e seus potenciais impactos efetivos no ecossistema de startups do Brasil, que já se encontra em ebulição.
O que define uma startup
O Projeto de Lei enquadra como startups empresas, mesmo com apenas um sócio administrador ou diretor estatutário, e sociedades cooperativas que atuam na inovação aplicada a produtos, serviços ou modelos de negócios.
Também são necessárias a apresentação de receita bruta de até R$ 16 milhões no ano anterior e inscrição de até dez anos no CNPJ.
O documento exige que as startups declarem ter um modelo de negócios inovador ou que se enquadrem no regime especial Inova Simples.
O que muda
Thiago do Val, professor da Pós-Graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, avalia que o projeto em si não traz mudanças significativas ao modo pelo qual as startups já operam no Brasil, mas o regulamenta. Ele enfatiza que não existe expectativa de veto presidencial em nenhum ponto da proposta.
Para o professor, o texto traz segurança para relações contratuais feitas recentemente e para investidores estrangeiros e nacionais, propiciando um aquecimento do mercado nos próximos meses.
“Fica claro, agora, por exemplo, que investidores não respondem pelas dívidas das startups. Por mais que opinem como conselheiros, não respondem mais pelos problemas financeiros”, esclarece.
Do Val aponta que essa novidade responde a um contrassenso do ambiente de negócios: “Nós temos uma proteção trabalhista muito grande. Juízes condenam toda a cadeia para pagar a indenização do empregado, mas investidores não fazem parte do contrato social”.
Estão contemplados pela nova lei as figuras do investidor-anjo e do investidor pessoa física, por exemplo.
O professor explica que, para o investidor pessoa física, a nova lei permite abater prejuízos acumulados na fase de investimento com lucro futuro, apurado na venda de ações mediante contrato. “Isso faz com que a tributação sobre o ganho incida sobre o lucro líquido”.
Do Val explica que o novo texto replica a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre a atuação de fundos de investimento como investidores-anjo. “Esses fundos passam a investir dinheiro na empresa e o texto permite participação em conselhos, acesso aos dados financeiros e outras medidas”.
Os Fundos Patrimoniais ou Fundos de Investimento em Participações (FIP), nas categorias capital semente, empresas emergentes e empresas voltadas à pesquisa, desenvolvimento e inovação, são outra maneira de captação de recursos trazida pela lei, antes não permitida.
“O uso desses fundos era restrito, mas agora passam a ser aplicados também em startups, desde que haja comprovação de que a empresa mantém negócios de base tecnológica”, explica.
As novas regras também facilitam que as empresas concorram em licitações públicas com regras específicas, mesmo com pouco tempo de CNPJ. O poder público, sejam os entes municipal, estadual e federal, pode adquirir soluções de startups. O valor máximo a ser pago por contrato é de R$ 1,6 milhão.
Como pensam os investidores
Fábio Murad, economista e CEO da SpaceMoney, opina que os investidores com recursos já aplicados em startups estarão mais protegidos com o Marco em vigor. Ele afirma que o termo ‘inovação’, em si, só atrai mais negócios.
“O termo, por ser um pouco genérico, já é muito interessante para empresas se enquadrarem. Porque não necessariamente o produto precisa ser inovador, mas sim o seu processo. Bancos de desenvolvimento, por exemplo, levam isso em consideração”, afirma.
Murad espera que a lei, em conjunto com outros projetos e reformas em andamento, possibilitem, de fato, mudanças no ambiente de negócios – o que ele diz ainda não ter visto e cita como exemplo de baixa efetividade o programa BEm, que permite que empresas reduzam temporariamente jornada de trabalho e salários e suspendam contratos, mediante acordo com funcionários. Como contrapartida, o governo paga ao trabalhador o benefício, que pode chegar a R$ 1.911,84 por mês.
O executivo credita, em grande parte, ao Judiciário a baixa adesão a essas medidas: “Como os tribunais vão reagir quando as startups quebrarem? Vamos ver se eles não vão atacar o patrimônio pessoal de quem investiu. No Brasil, não se faz separação clara entre pessoa física e pessoa jurídica”.
Para ele, isso ainda tende a afastar novos investidores e o Marco vai colocar esse problema cultural em teste.
A exemplo de seus próprios negócios, Murad recomenda que empreendedores busquem fortalecer suas empresas, independentemente de serem startups ou não, com o auxílio de outros profissionais do meio e investidores sérios, que disponham de mecanismos de proteção.
Nova lei anima aceleradora de startups
Ravi Gama, managing director da aceleradora de startups InovaHub, avalia que o Marco trouxe uma série de mudanças positivas, apesar de tímidas. “Foi um avanço aquém do esperado”, diz.
Entre os destaques, Ravi traz a aprovação do contrato mútuo conversível – sem oneração tanto para o lado do investidor, quanto para a startup, que antes era realizada como manobra jurídica (não ilegal) e dificultava o processo.
Ravi diz que criou a metodologia do programa de aceleração da InovaHub já com a possibilidade de o Marco ser aprovado um dia. A aceleradora trabalha com a ideia de ‘cultura da educação empreendedora’ e pré-estabelece temas a serem apresentados com a finalidade de “que as startups sejam forçadas a saber exatamente o que vendem e como podem impactar o país através de seu modelo de negócios”, diz.
Para as próximas edições do programa, Ravi afirma que vai rever como orientar os empreendedores a distribuírem ações de suas empresas, visto que o trecho referente a stock options (opção de compra de ações) foi retirado do texto. Segundo ele, haverá um maior incentivo para que as startups se transformem em S.A.s durante o período de aceleração.
“Antes, devido às burocracias existentes, não fazia sentido pedir isso. Mas com essa facilitação trazida pelo Marco vai ser algo que nós vamos requisitar aos empreendedores”. Uma startup que desejasse ser empresa S.A. precisava publicar balanços e registrá-los em cartório, além de ir aos jornais informar fatos relevantes. “Esse processo de ir até aos veículos poderia custar cerca de R$ 20 mil, o que pesa bastante para essas empresas menores”, explica Ravi.
Destaques positivos e negativos
Thiago do Val, do Mackenzie, avalia que as definições de contratos e modalidades de financiamento regulamentadas são alguns dos pontos positivos trazidos pela lei, mas destaca o ‘sandbox regulatório’.
Nesse sistema, as agências reguladoras retiram temporariamente a obrigatoriedade das startups de cumprir normas da legislação setorial, para que as soluções inovadoras propostas por essas empresas sejam testadas mais rapidamente e com menos custos.
“Dessa forma, as startups têm mais liberdade para pesquisa e desenvolvimento”, pontua. Ele enfatiza que “a nível de Congresso, a proposta aprovada foi boa”, em razão da prorrogação de debates e interesses diversos entre os mais de 500 parlamentares e a tramitação do projeto entre Câmara e Senado.
“Muita gente reclama das retiradas de benefícios fiscais e do stock options, mas a legislação e os tribunais trabalhistas são muito protetivos. Mesmo com a aprovação desses pontos, seria difícil vê-los em prática e o momento da economia brasileira também não permite muitas renúncias fiscais”, afirma o professor.
Para Ravi Gama, da InovaHub, justamente a retirada das stock options foi uma medida conservadora que impediu o Marco de ser mais ousado. “Nesse termo, funcionários das startups podem receber ações. Posso dizer que isso é praticado faz uns dez anos e não foi regulamentado. A Câmara entendeu que interferiria na legislação trabalhista”, explica.
Ele avalia, entretanto, que o texto foi benéfico. “Se o Brasil estava há dez anos atrasado em relação a outros países, agora está só sete”, completa o representante da InovaHub.
Fábio Murad, da SpaceMoney, afirma que não se deve esperar que um grande número de pessoas invista em startups somente por causa da nova regulamentação. Para ele, vai ser necessário esperar como os tribunais trabalhistas e a cultura econômica reagem a esse novo modelo.
“Vai ser preciso testar como o Judiciário se comporta com essa nova lei, porque nós temos culturalmente muitas regras protecionistas, e também esperar como as startups se preparam desde agora para consolidar os espaços onde atuam”, conclui.
Expectativas
Thiago do Val avalia que, já a partir do segundo semestre, com a lei sancionada e em vigor, startups do setor de mineração, com atuação nas áreas governamental e jurídica, fintechs (financeiras), legaltechs ou lawtechs (jurídicas) devem ser as primeiras a sentirem os efeitos positivos da nova regulamentação. Segundo o professor, esse ambiente se deve também à aprovação da Lei do Governo Digital, em vigor desde o fim de março.
“Ela permite acesso aos dados públicos para fins de análise, para que haja melhora no acesso para empresas. O Congresso havia solicitado que essas informações fossem fornecidas mediante cobrança, mas o presidente vetou essa medida justamente porque atrapalharia startups. As duas leis, aprovadas, dão mais segurança aos investidores”, afirma.
Para Ravi Gama, a médio e longo prazo, os segmentos de fintechs (financeiras) e insurtechs (seguros) vão experimentar grande crescimento com a vigência da nova lei. Porém, o executivo destaca as startups B2G (Business-to-government) como o segmento que tende a se expandir.
“Vai ser uma grande vitória para essas empresas conseguirem participar de licitações com tão pouco tempo de CNPJ. Não acho que startups vão ser criadas exclusivamente para vender soluções aos governos, mas, com certeza, as existentes vão criar verticais para oferecê-las e concorrer em licitação”, diz.