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O governo de pés trocados

O governo vai para um lado e o Presidente vai para o outro

O governo de pés trocados

“O Presidente da República, finalmente, colocou o carro do Governo para andar no combate à pandemia. Entretanto, por vezes, desce do carro e se diverte, jogando pedras no motorista e nos passageiros. Parece ruim, mas é menos pior do que quando ele furava os pneus, demitia os motoristas e, com sua turma da esquina,  apavorava os passageiros.”

De Jair Bolsonaro pode se dizer tudo de ruim, exceto que ele tenha praticado estelionato eleitoral. JB entrega, ou tenta entregar, tudo que prometeu aos seus eleitores. Mesmo a grande massa de eleitores que não o conhecia mais de perto, teve a oportunidade, nos poucos meses de campanha, de ouvir suas mensagens falaciosas, simplistas e repletas de uma ignorância primária sobre gestão e democracia. Favorecido pelo crime, de que foi vítima, na reta final da campanha, pôde esquivar-se dos debates e, assim, manter-se a salvo de questionamentos diretos de seus adversários.

Pregou para os convertidos e estes, pelas redes sociais, arregimentaram os cinquenta e oito milhões de votos que o levaram à vitória, escorado no antipetismo, nos acertos e erros da Lava Jato, no discurso moralista, na incompetência de Dilma, na boa imagem do “herói” Moro e no personalismo e vaidade de Lula, que esperou até a última hora para ungir Haddad como candidato. Este, por sua vez, por lealdade, conveniência ou covardia, não fez o “mea culpa”, não dele como pessoa física, mas do partido, sabidamente envolvido em grossa corrupção, aqui incluído o seu líder máximo.

Mesmo não entregando grande parte de suas promessas, tolhido pelo Congresso, pelo STF, pela grande imprensa e pelos seus próprios erros, JB ainda dispõe de razoável cacife eleitoral — que já foi bem maior, diga-se de passagem. Não considero que a adesão ao Centrão, o rompimento com Moro e o desprezo pela Lava Jato sejam sinais de mudança de JB – ele pensa exatamente como pensava em 1990, quando chegou e permaneceu no baixo clero da Câmara por vinte e oito anos −,  nem mesmo traição aos seus eleitores de origem. Estes o acompanharão até ao Inferno (ou ao Céu, segundo eles). Primeiro, porque se sentem, fielmente, representados pela figura tosca, simplória e mal construída do Presidente. Segundo, porque não têm alternativa. Bolsonaro não tem herdeiros na política, assim como não tem partido. Os seus seguidores radicais também não. Suas plataformas são o antipetismo, o antilulismo e a corrupção dos outros.

Mudança de tom

Mas há fatos novos no governo Bolsonaro, notadamente a partir de fevereiro deste ano. E são fatos intrigantes, quase inéditos no período republicano da política brasileira. A origem de tais fatos está em duas ocorrências, que mudaram o tom do governo, sem que o Presidente tenha mudado de estilo e figurino. Aí está a novidade, ou a estranheza: o governo vai para um lado e o Presidente vai para o outro. Não que Bolsonaro tenha virado uma rainha da Inglaterra, ou um presidente irrelevante de final de mandato. Continua zeloso de sua autoridade e mantém, sob rédeas curtas, seu sofrido e sofrível ministério.

Entretanto, em fevereiro elegeram-se as duas novas Mesas Diretoras no Congresso e seus presidentes chegaram falando grosso. Quase ao mesmo tempo, o STF tornou, novamente, elegível, o maior rival de JB. O único capaz de abatê-lo, eleitoralmente, e que, também, não economizou palavras, nem escondeu suas intenções de curto e médio prazos. 

Paradoxalmente, o opositor Rodrigo Maia favorecia mais a estratégia de JB, travando a pauta das reformas e dos projetos mais importantes. Entregava de bandeja a desculpa de que Bolsonaro precisava para justificar sua inação e falta de disposição para enfrentar os reais problemas do país. Rodrigo Maia queria fazer tudo isso em seu segundo período de Presidência da Câmara, mais perto da eleição de 2022, para trazer o “Mercado” para sua candidatura. Deu errado, perdeu o cargo, o DEM e está em hibernação.

Arthur Lira chegou até a mencionar, discretamente, a possibilidade de impeachment por conta dos erros na gestão da pandemia. Rodrigo Pacheco não deixou por menos e Lula, ora pois bem, continua sendo Lula. Então, Bolsonaro teve que mudar a orientação do seu governo. Subitamente, surgiu a pressa pela compra de vacinas, mesmo a sino-paulista do vilão Dória; veicularam-se campanhas nacionais de prevenção e até esqueceram, por algumas semanas, a cloroquina e a ivermectina. Bolsonaro chegou até a colocar máscaras em solenidades palacianas, livrou-se do chanceler olavista e antiglobalista, deu novos brinquedinhos, alguns até usados (rachadinhos) para os filhos não precisarem acompanhar papai ao trabalho no Planalto, e nomeou um médico para o Ministério da Saúde, avanços notáveis para um governo envolto em negacionismo e messianismo (no mau sentido).

Mas não pode e não quer deixar de ser o Presidente eleito pelos radicais. Precisa deles para sobreviver. Sem eles, com suas fake news, truculência e desprezo pela democracia e justiça social, a massa dos inocentes “úteis” de 2018 bandearia-se para qualquer um dos outros candidatos. Seria o fim inglório de uma aventura, que nem ele mesmo acreditava que seria possível. Por isso, enquanto seu Ministro da Saúde e sua Secretaria de Comunicação Social tentam conscientizar a população do acerto das medidas de prevenção contra aglomerações, do uso de máscaras e da necessidade e eficácia das vacinas, e o novo Chanceler procura reconstruir as pontes dinamitadas pelo antecessor, o Presidente continua bradando contra os governadores, bravateando chamar o Exército para “garantir direitos”, estimula e comparece em aglomerações e manifestações anticiência e antidemocracia e, vez ou outra, ataca a China, de onde vem nosso “elixir da salvação”. 

É inédito, mesmo fora do Brasil, que um presidente com pendores autoritários permita que o Governo caminhe em uma direção contrária à sua, mas a conveniência e o instinto de sobrevivência assim o obrigam. Mais uma vez o mundo curva-se à criatividade tupiniquim.  

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