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Oito de setembro de 2021. Um dia comum?

Não houve golpe, mas o fato de acordarmos livres não diminui o impacto e as futuras repercussões das manifestações do Dia da Independência

Jair Bolsonaro discursa na Avenida Paulista durante as manifestações pró-governo no feriado de 7 de setembro - Reprodução
Jair Bolsonaro discursa na Avenida Paulista durante as manifestações pró-governo no feriado de 7 de setembro - Reprodução

"A nação dormiu apreensiva na segunda feira, 6 de setembro, mas sobreviveu. Teremos, ainda, muitas noites insones, até que o país reencontre o caminho da normalidade. Enquanto isso, a economia patina, a inflação sobe, o desemprego permanece e a pandemia não vai embora. Haja coração. Haja Rivotril."

São nove horas da manhã da quarta-feira, dia 8 de setembro. O país acordou e quem tem emprego foi trabalhar; uns saíram para procurar e outros já perderam o sonho e o sono. A meninada foi para a escola. Muita gente deixou para voltar para casa no próximo domingo.

O Congresso e o Judiciário, também, devem estender a folga da Independência. A imprensa, o transporte de pessoas e de cargas, a Bolsa e o jogo de bicho estão ativos e em plena operação. Tudo dentro da normalidade, como costuma acontecer em países maduros e de democracia consolidada diante de frenesis golpistas e ajuntamentos manipulados, sejam de patriotas ou de arruaceiros e baderneiros.

Reconheço. É uma visão demasiada otimista, mais por desejo que convicção. O fato de acordarmos livres não diminui o impacto e as futuras repercussões das manifestações do Dia da Independência. Por dever de ofício e curiosidade sociológica estive na Avenida Paulista e no Vale do Anhangabaú, mais tempo naquela que neste.

Impressionou-me a quantidade de pessoas vestidas de verde e amarelo na grande avenida e a desproporção em relação ao pessoal vestido de vermelho no Vale. Coisa de oito para um. A estratégia da direita de concentrar o ato na Capital foi bem sucedida, na medida em que o deslocamento de centenas (ou milhares) de ônibus das cidades do interior deu maior visibilidade e corpo à multidão apoiadora do Presidente da República.

Impressionou, mas não surpreendeu. A esquerda não se empenhou, nem se organizou. Apenas marcou posição, quase uma manifestação protocolar. Estratégia ou fraqueza? Seja o que for, agiu bem. Baixou a temperatura e não estimulou confrontos. Por outro lado, a visão de enormes multidões reunidas em todas as capitais dos estados mostrou que o bolsonarismo ainda tem fortes raízes na classe média e que não é um fenômeno a ser desprezado.

Contra ele, pesa o fato de que essa gente toda, ao mesmo tempo que é percentual significativo dos bolsonaristas, não é tão significativa quando se fala do eleitorado total. Numa aritmética rasteira, se dez por cento de seus seguidores foram para as ruas e todas as aglomerações somadas tenham chegado a três milhões de pessoas, então, o eleitorado do presidente chegaria a trinta milhões, praticamente a metade de seus votos de 2018. Resumo da ópera: por enquanto, não há chances de terceira via.

De qualquer forma, mais importante que comparar números e estratégias, é centrar a análise naquilo que realmente importa e que chamou para si todas as atenções da nação nessa terça feira, ou sejam, os pronunciamentos do Excelentíssimo Senhor Presidente da República.

Depois da cerimônia cívico-militar no Alvorada, bonita e bem organizada, mas muito séria e comportada para os padrões presidenciais, JB partiu para o que mais gosta. Dois palanques: um no centro político e o outro no centro econômico da nação.

Dia ensolarado, multidões entusiasmadas e nenhuma possibilidade de contestação. Afinal, quem seria maluco, de sequer usar, naquelas áreas, uma roupa de baixo ou um broche vermelho?

Sentindo-se em casa, JB subiu o tom pela manhã, mas deixou o pior (para nós e para ele) para o discurso em São Paulo. Como Júlio César em 49 A.C., Jair atravessou o Rubicão. Como Hernán Cortés, no século XVI, ao chegar ao reino dos astecas para submetê-los, Jair queimou os navios. Não há possibilidade de retorno. Há duas formas de enxergar, ou de ouvir, o discurso do presidente.

A primeira: com estranhamento. Raras vezes, na história do mundo, viu-se um governante legítimo e legal, pelo menos por ora, gritar, em seu próprio país, pela libertação de presos políticos, o fim da censura, a mudança do sistema de votação e o respeito à liberdade de expressão e à Constituição.

Juro que imaginei estar ouvindo o grande Ulysses Guimarães em um dos comícios da eleição de 1974 ou Nelson Mandela ao sair da prisão na África do Sul, pouco antes do fim do apartheid. Será o presidente um banana? Ou um incompetente político, que não soube transformar em apoio do Congresso e da maioria da população, os 58 milhões de votos que recebeu, computados em urnas eletrônicas?

Qualquer resposta desqualifica Jair Bolsonaro para o exercício do cargo. Não estou falando de impeachment até porque ele ainda dispõe, com folga, dos 143 votos na Câmara que lhe bastam para barrar a proposta. Isso na remota hipótese de Arthur Lira fazê-la andar.

A segunda: com prudência. O que fará um presidente, que não sofre risco imediato de impeachment, mas que perdeu as condições de governar por absoluta incapacidade de dialogar, em termos civilizados, com parte importante da nação? Um golpe? Um autogolpe? Só JB e seu círculo mais íntimo sabe a resposta.

Não se espera de um político de sua estirpe e com seu passado o nobre gesto da renúncia. Os inquéritos e ações que já tramitam contra ele podem ser retidos ad infinitum por Aras na PGR e Cássio no STF. Para o último, basta um pedido de vista.

Finalizando, com um lugar comum, ou melhor, chovendo no molhado. Há muita água para rolar. O Brasil não acabou no último dia 7. Nem seu sofrimento.

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