A política de encarceramento favorece as facções criminosas, bem articuladas dentro e fora dos presídios, alerta Gabriel de Santis Feltran, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor de diversos artigos e livros sobre o crime organizado, como Irmãos: uma história do PCC.
“Quando estouram os conflitos, as pessoas já estão mobilizadas para eles do lado de fora. Os salves das facções apenas organizam a dinâmica dessa mobilização. Custa muito caro manter isso, mas seguimos nessa toada há 30 anos”, observou Feltran em entrevista exclusiva, por escrito, à Agência Brasil.
A advertência do especialista ocorre no momento em que o Ceará vive uma sequência de violência a partir de ações de grupos criminosos organizados. Dos presídios, quatro facções organizaram atentados que interferiram no cotidiano dos moradores de Fortaleza e cidades no interior e litoral do estado, afetando o comércio, o trabalhar e as saídas às ruas.
O que ocorre no Ceará não é um caso isolado. A ação ofensiva dos criminosos na região metropolitana da capital cearense repetiu dezenas de episódios visto em diversas partes do país nos últimos anos. Duas das quatro facções criminosas organizadas nos presídios do Ceará são nacionais.
A seguir, trechos da entrevista concedida por Gabriel Feltran à Agência Brasil:
Agência Brasil: Segundo o noticiário, os recentes atentados ocorridos na região metropolitana de Fortaleza ocorreram por protestos de diferentes facções criminosas que dominariam 11 dos 12 presídios naquele estado. Os atentados recentemente ocorridos lá seguem algum padrão de violência e intimidação visto anteriormente?
Gabriel Feltran: Sim, é um padrão muito recorrente. A política de segurança centrada na ostensividade e encarceramento, como nos Estados Unidos e no Brasil, favorece a coletivização do crime. No Ceará foi muito evidente, não? Havia quatro facções em guerra entre si, mas as medidas governamentais que queriam acabar com elas, as provocaram a agir em concerto. Ben Lessing, da Universidade de Chicago, já diz que essa política produz organização no crime há tempos. Exemplos não faltam. Em São Paulo, o PCC [Primeiro Comando da Capital] se expande há 25 anos instrumentalizando as políticas de segurança e o sistema de justiça. Cada novo preso é um aliado em potencial para a facção, e saímos de 40 mil para 250 mil presos no estado, em 20 anos. A maior facção do país surge desse contexto. Prender pune a pessoa, mas favorece as facções. Não há como não ver essa realidade.
Agência Brasil: As causas dos atentados também são verificadas em outros estados?
Feltran: Algumas sim, outras não. Oportunidade para ganhar dinheiro com droga, arma, assalto e carro ilegal há em todos os estados. Desigualdade também. Mas fazer contrabando na fronteira, assalto a banco no interior ou tráfico no varejo, numa capital, são coisas muito diferentes. Cada facção se organiza de uma forma específica. PCC não é igual a CV [Comando Vermelho], GDE [Guardiões do Estado] ou FDN [Família do Norte]. As políticas de segurança também variam em cada estado. Então, em primeiro lugar, há que se conhecer bem cada situação. O Ceará, nosso foco agora, teve 48,6% mais homicídios em 2017, se comparado ao ano anterior. O Distrito Federal, 17,1% menos, segundo as mesmas fontes. São Paulo assistiu a uma explosão de homicídios nos anos 1990 e a uma diminuição de 70% nos anos 2000. Todo o Nordeste teve aumentos significativos na última década. Cada lugar, um lugar. Em São Paulo, que conheço melhor, não há guerra de facções por exemplo. O tráfico de varejo, na favela, além de ter preço tabelado, não usa armas ostensivamente há quase duas décadas. Por que será que é o estado com taxas mais baixas de homicídio, em toda a federação?
Agência Brasil: No primeiro dia dos atentados no Ceará foi dito à Agência Brasil que os protestos teriam ocorrido por causa do anúncio de uma política prisional “mais vigorosa”, que incluiria a transferência de lideranças de presídios e a redistribuição dos presidiários não mais por facção, mas por tipo de crime. Funciona essa mudança?
Feltran: Não. Nossa falta de imaginação na área de segurança me impressiona. O mesmo gestor que diz que o sistema carcerário é o problema, se vangloria de anunciar que mais tantos criminosos foram presos! Prender assim, como sabemos, não tira a pessoa do mundo do crime, e ainda favorece as facções. Já não foram realizadas centenas de transferências para outros estados, outros tipos de regime prisional? As facções diminuíram com isso?
Agência Brasil: Por outro lado, abrir mão dessas iniciativas, negociar e aceitar demandas das pessoas presas não aumentam o descontrole dos governos sobre o presídio?
Feltran: Fortaleza se tornou um ponto muito relevante do mercado exportador de drogas. Um grama de cocaína em Berlim pode ser vendido por 100 euros, mais de 400 reais. Um quilo, que custa menos de 10 mil na fronteira, geraria 400 mil reais. Imagine um contêiner. As principais facções do país não estão em Fortaleza por acaso. Se o Secretário de Segurança fala algo e o estado vira um caos, é porque há grupos com poder – e não é pouco poder – do outro lado. Se o agente prisional ganha 3 mil de salário, e um preso, no meio de uma multidão de miseráveis, fatura 200 mil com o tráfico por mês, ele vai negociar as regras no cotidiano da prisão. Ponto. O que temos que pensar é como evitar essa situação inicial. A lucratividade de um mercado ilegal como o do tráfico, transnacional, precisa ser controlada. A disputa em torno desse lucro tem feito muitas mães chorarem. Regulação dessa lucratividade muda o jogo, seja ela feita pelo mercado, pela lei ou pela administração. É o modelo de segurança que precisa ser repensado. O resto é populismo.
Agência Brasil: Como as pessoas que estão presas conseguem mobilizar e arregimentar gente para fazer esses protestos? Isso se deu pela chamada “irmandade” existente nas facções? Como funciona?
Feltran: Quando alguém é preso, normalmente ele encontra algum conhecido, amigo, parente ou vizinho na cadeia. Porque encarceramos sempre o mesmo estrato da população. Não há descontinuidade entre a experiência de vida, no crime ou na vida cotidiana, dentro e fora da cadeia. Há continuidade. Sendo assim, a comunicação entre fora e dentro da cadeia se faz o tempo todo, não apenas por celulares, mas por idas e vindas, notícias, bilhetes, jumbos, livros, advogados, religiosos, grupos voluntários, parentes que entraram e saíram, visitas etc. Não só para atividades ilícitas, que fique claro. Para tocar a vida cotidiana. Então o clima das cadeias e das quebradas é sintonizado. Não é preciso arregimentar ninguém. Quando estouram os conflitos, as pessoas já estão mobilizadas para eles do lado de fora. Os salves das facções apenas organizam a dinâmica dessa mobilização.
Agência Brasil: Conforme dito por uma autoridade à Agência Brasil, as facções fizeram ameaças ao governo estadual por meio do WhatsApp. Por mensagem também articularam seus apoiadores para os atentados. Por que os presídios, no Ceará e em outros estados, não conseguem bloquear em definitivo os celulares?
Feltran: Porque, como disse antes, há muito poder e muito dinheiro circulando no mundo do crime. Não é um problema técnico, mas fundamentalmente econômico e político. Em cada lugar, e a depender da negociação que for feita, vai custar tanto para entrar um chip, um celular, um carregador. E mesmo que não entre, há muitas outras formas de fazer comunicação entre dentro e fora da cadeia.
Agência Brasil: Pelo menos 20 presos foram transferidos para a Penitenciária Federal de Mossoró. Essas transferências serão suficientes para desarticular o funcionamento das facções? Por quê?
Feltran: Não. São medidas paliativas, voltadas para acalmar a opinião pública, ganhar tempo, ouvir o que dizem os setores de inteligência, os informantes e, sobretudo, esperar a poeira abaixar. A guerra arrefece depois de cada batalha, de todo jeito. Não há saída mágica para o problema das facções no Brasil, enquanto não se voltar o modelo de segurança pública para ações de inteligência, invertendo o ciclo das últimas décadas, que nos trouxe a essa situação. Uma regulação responsável dos mercados ilegais, associada a um debate sério sobre homicídios em cada estado, deveria ser o nosso caminho agora.
Agência Brasil: O Brasil já tem a terceira maior população carcerária no mundo e a sensação é que o crime e a violência aumentaram nos últimos anos. O encarceramento funciona?
Feltran: Prisão funciona para controlar a criminalidade, na Dinamarca, que tem 22 presos a cada 100 mil habitantes, quase sempre migrantes. A juventude dinamarquesa discute se deve trabalhar ou não, já que todo mundo tem garantia de renda para a vida toda. Não é o nosso caso. No Brasil, metade das casas não tem saneamento básico e a taxa de encarceramento é de 328/100 mil. Nosso modelo tem multiplicado o número de criminosos. Você prende um menino que vendia drogas na esquina hoje, e amanhã tem outro trabalhando no lugar dele. Daí temos dois traficantes, ao invés de um. Custa muito caro manter isso, mas seguimos nessa toada há 30 anos. Alguém deve estar ganhando com isso, mas não é o país.