Nada como um bom aperto financeiro para que a criatividade floresça. Que o diga Charles Dickens, autor dos famosos Oliver Twist e David Copperfield, que em dezembro de 1843, apertado pelas dívidas, publicou um “livrinho de natal”, que vendeu, em apenas uma semana, mais de seis mil cópias. O “livrinho” não só bateu recorde de vendas, como também de tempo de escrita. Dickens levou menos de trinta dias para escrever “Um Conto de Natal”, história contada e recontada até hoje em todo o mundo, adaptada para TV e cinema, como o clássico que é.
Com personagens marcantes, almas penadas, ricos infelizes e pobres de bem com a vida, Ebenezer Scrooge e sua avareza, povoam o imaginário natalino em adaptações interessantíssimas. Sua jornada de transformação é animadora e nos faz refletir sobre passado e futuro, prioridades e valores, convidando-nos a embarcar na mesma análise da personagem, ou seja, o que realmente vale a pena.
Não é “spoiler” porque a obra tem quase 200 anos, mas o final é feliz.
No meio das contradições entre ser pobre e ser rico, está a felicidade. Na história, os menos abastados são muito mais felizes que os milionários.
E aqui cabe uma divagação do “ser” feliz:
Leandro Karnal criou um curso de “Felicidade sem Fórmula”, Monja Coen fala que é o nirvana, Seu Jorge canta que felicidade “é poder jogar o pano, colar no show do Caetano e cantar ODARA até o dia raiar”. Pra mim, felicidade é uma placa iluminada no meio do deserto, mas não existe manual, e o substantivo felicidade, seja ele comum ou abstrato, não há de ser contido por compreensões particulares, até porque esse texto não se presta a isso, e a sociedade brasileira, mesmo no clima natalino, não tem motivos para adotar tal sentimento ou sensação.
O Espírito do Natal Futuro
Scrooge e sua avareza, neste dezembro de 2020, podem ser traduzidos por uma sigla: IGPM!
O Índice Geral de Preços do Mercado, cujo objetivo é medir a inflação na economia do país, está além da imaginação de qualquer Dickens. O índice contém a variação de preços de matérias-primas agrícolas e industriais, de bens e serviços finais, como vestuário, transporte e comida. O IGPM apresentou elevação acumulada de 23,52% nos últimos doze meses, ou seja, este ano de 2020 não está de brincadeira.
Para além de um número percentual, o IGPM sinaliza reajuste de aluguéis e outros contratos, como os de energia elétrica, telefonia e alguns tipos de seguros e planos de saúde. Não longe, os contratos de compra e venda de lotes (usual entre as classes menos favorecidas), também sofrem tal correção.
E a pergunta que fica é: como vamos conseguir manter nossos contratos com o índice nas galáxias?
Eu não disse que o aperto financeiro faz nascer a criatividade?
Pois é… e a criatividade está na própria base do problema: a COVID.
Mudanças nas “regras do jogo”
De tão inesperada, a pandemia autoriza a flexibilização dos contratos e retira a culpa do inadimplemento do devedor, tudo para privilegiar o equilíbrio de forças das partes. Como pode ser isso? O novo coronavírus e seus reflexos são fatos supervenientes e imprevisíveis, que ensejam, desde que haja essa declaração, a mudança das regras do jogo. Fácil? Claro que não.
A mudança do índice de reajuste dos contratos pode acontecer ou por decisão judicial (desde que haja provocação), ou por acordo entre as partes, que obviamente, é a forma mais fácil de encerrar a problemática toda, mas existe uma longa distância entre o momento do acordo e o instante de pagar o boleto.
A Imprevisão
Certo é que a “Teoria da Imprevisibilidade”, mencionada no Código Civil, mesclada com a balzaquiana legislação protetiva dos consumidores (Código de Defesa do Consumidor), garante o “pano pra manga” da perlenga toda. Não se engane. Os conflitos vão cair no colo do Judiciário, que aliás, já tenta se preparar para a enxurrada de questões oriundas desse vírus apocalíptico.
Melhor seria se todos sentássemos à mesa para comer o peru natalino, mas uns tentam excluir os outros, e sempre sobra mais osso do que carne para os mais fracos.
A distância reside na tônica de Ebenezer Scrooge. Por aqui ainda não se tem notícia de alguém que tenha sido tocado pelo Espírito do Natal, infelizmente.
Escolas, loteamentos, alugueis, planos de saúde e muito mais, se preparam para, de uma tacada só, aplicar o reajuste quando as luzes do novo ano se acenderem. A previsão é de tempos sombrios. Um verdadeiro “Conto de Natal” às avessas: ricos felizes e pobres cada vez mais pobres. E o pior, sem um Dickens para criar um enredo mirabolante e marcar a história para sempre.
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